Há 20 anos, o australiano-alemão Antony Loewenstein decidiu viajar o mundo atrás de tragédias em todos os continentes. Essa empreitada rendeu ao jornalista e documentarista uma perspectiva única sobre a resposta do capital às tragédias, sintetizada no livro “Disaster capitalism: Making a killing out of catastrophe” (Capitalismo do desastre, em livre tradução).
Um dos casos estudados por Loewenstein é o de Nova Orleans, que foi atingida pelo furacão Katrina em agosto de 2005. Na ocasião, foram registradas 1836 mortes ao todo. A tempestade rompeu as barragens de contenção, gerando a inundação das partes mais baixas da cidade. 400 mil pessoas perderam suas casas, muitas se mudaram para outras cidades e até outros estados.
O que se viu a seguir foi uma fórmula neoliberal replicada posteriormente em muitos lugares: redução de serviços públicos, casas construídas em áreas onde não deveriam estar, escolas particulares no lugar de escolas públicas. E vítimas frequentemente ignoradas. O autor viu esse fenômeno se replicar do Afeganistão à Papua Nova Guiné.
“A melhor forma que encontro para descrever o capitalismo de desastre são pessoas que ganham dinheiro com a miséria”, ele define, em entrevista ao Intercept Brasil. “O que pode acontecer por meio da guerra, da ajuda humanitária, ou da oferta de apoio em tempos de crise”, diz.
No caso de Nova Orleans, o estado da Louisiana contratou a consultoria Alvarez & Marsal para reestruturar a cidade, a mesma empresa que o prefeito Sebastião Melo, do MDB, agora escolheu para aconselhar a recuperação da capital gaúcha.
Loewenstein estudou a reconstrução de Nova Orleans no pós-Katrina. Nessa pesquisa, viu o trabalho de consultorias como a Alvarez & Marsal que transformaram o bairros populares em bairros elitizados, expulsaram o minorias para regiões mais distantes e fortaleceram o interesse de grandes empresas, shoppings e similares.
“Uma empresa externa de gestão não conhece as necessidades da população local”, ele critica. “Eu ficaria preocupado que algum tipo de coisa semelhante aconteça no Rio Grande do Sul”.
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Desde o lançamento de “Capitalismo do desastre”, Loewenstein se tornou uma voz respeitada e crítica nas discussões sobre exploração neoliberal e conflitos, sobretudo no Oriente Médio.
Sua abordagem investigativa rendeu-lhe reconhecimento global e prêmios importantes, como o Walkley Book Award, o mais prestigioso de jornalismo na Austrália, por seu livro mais recente, “Laboratório Palestina” (em pré-lançamento pela Editora Elefante).
Leia a entrevista a seguir:
Intercept Brasil – Você e Naomi Klein pesquisaram sobre esse novo conceito, o capitalismo de desastre. O subtítulo do seu livro oferece uma definição mais curta e brutal: “lucrar com a catástrofe”.
Como isso realmente funciona? Como é possível lucrar com a destruição?
Antony Loewenstein – A melhor forma que encontro para descrever o capitalismo de desastre são pessoas que ganham dinheiro com a miséria, o que pode acontecer por meio da venda de armas e insumos de guerra, da ajuda humanitária, ou da oferta de apoio em tempos de crise.
Como ele funciona? De forma prática, ao longo das últimas décadas, o estado, seja nos Estados Unidos, no Brasil ou em outros países, quer gastar menos do seu próprio dinheiro, dinheiro do estado, dinheiro público, e contratar mais e mais forças privadas externas.
‘As vítimas frequentemente são ignoradas pela imprensa e empresas contratadas para reconstrução’.
Essa prática frequentemente não fornece os serviços necessários às pessoas em sofrimento, mas certamente enriquece muitas empresas que estão tentando lucrar com a catástrofe.
E quando se trata, por exemplo, de alguma coisa como o terremoto no Haiti em 2010, que foi um completo desastre e matou cerca de 250 mil pessoas, os EUA, durante o governo do presidente Obama, se comprometeram a ajudar. Prometeram algo como 10 ou 11 bilhões de dólares em ajuda humanitária.
Mas uma parte muito grande desse dinheiro, na verdade, ia para empresas privadas americanas, que iam até o Haiti, forneciam muito, muito pouco em termos de serviços ou formação contínua, e depois voltavam para os EUA, sem melhorar em nada a situação dos haitianos.
E hoje, sem dúvida, o Haiti está uma bagunça completa. E eu me preocupo que algo semelhante possa acontecer no Brasil.
A prefeitura de Porto Alegre acabou de contratar a Alvarez & Marsal, que atuou em Nova Orleans, para nossa resposta ao desastre das enchentes. O que podemos esperar deles?
Francamente, eu estaria preocupado, porque em geral o que essas empresas fazem, as chamadas consultorias de gestão, é aconselhar que menos dinheiro seja gasto em serviços públicos e apoio público, e muito mais no setor privado.
‘A crise climática não vai acontecer no futuro, ela está acontecendo agora’.
Então, quando se trata de um desastre natural, a ideia é que seja algo como aconteceu em Nova Orleans após o furacão Katrina, em 2005. E destaco que essa empresa esteve envolvida na chamada reconstrução dessas áreas.
Houve uma redução enorme dos serviços públicos em Nova Orleans e em muitos outros lugares. Certas casas foram construídas em áreas onde não deveriam estar. Não havia escolas públicas suficientes, mas sim, escolas particulares, que, é claro, excluíam as pessoas que não podiam pagar: afro-americanos, hispânicos, entre outros.
E as vítimas frequentemente foram ignoradas pela imprensa e empresas contratadas para a reconstrução nos lugares que visitei nos últimos 20 anos, do Afeganistão ao Haiti e à Papua Nova Guiné. Suas necessidades são abertamente deixadas de lado.
Os moradores locais conhecem suas comunidades melhor do que ninguém. Uma empresa externa de gestão não conhece as necessidades da população local. A população local é quem conhece melhor essas necessidades.
Então, eu ficaria preocupado que algum tipo de coisa semelhante aconteça no Rio Grande do Sul após esse desastre natural.
Qual seria uma boa resposta para uma tragédia como as enchentes no Rio Grande do Sul? Quais seriam os princípios de uma resposta adequada e popular para esse tipo de tragédia?
Bem, existem duas formas de lidar melhor com isso.
Primeiro, esse é claramente um sinal do aumento das mudanças climáticas. A crise climática não vai acontecer no futuro, ela está acontecendo agora. E o que o Brasil e outros países precisam fazer o mais rápido possível é, obviamente, reduzir sua dependência e seu uso de combustíveis fósseis, fazer a transição mais rápida possível para a indústria de baixo carbono ou carbono zero, solar, eólica, e outras.
O que eles também precisam fazer nas regiões especialmente afetadas, digamos, por inundações, é construir defesas que sejam pagas pelo estado, não pelo setor privado.
É preciso haver muita pressão pública para que isso aconteça, para proteger essas comunidades, porque com muita frequência vi em meu trabalho com o capitalismo de desastre como os mais pobres e mais marginalizados são ignorados, e suas necessidades não são ouvidas.
E vi isso, por exemplo, no Afeganistão, no Haiti, e até em Nova Orleans, depois do furacão Katrina.
Você tem coberto o Oriente Médio em suas pesquisas e livros. As guerras são casos clássicos de desastres causados pelo homem. A colonização também é uma forma de “apropriação de bens comuns”; o que antes era terra indígena comunal se torna propriedade privada, desenvolvimentos imobiliários e assim por diante. Esse é o fio condutor entre essas duas pesquisas?
Sim, também é uma forma de apropriação de terras. É uma das coisas em que me concentro, especialmente no Oriente Médio, e não se trata apenas de Israel e Palestina, mas também de outras regiões.
Passei muito tempo na Arábia Saudita, no Egito, na Jordânia e em outros lugares, e a ideia é que a maioria desses estados são essencialmente estados clientes dos EUA. Eles existem como ditaduras, estados policiais, e no caso da Arábia Saudita, teocracias.
Seu objetivo é reprimir o próprio povo. E isso, claro, atende aos interesses dos Estados Unidos e de Israel, porque a verdadeira democracia é perigosa na maioria dos estados árabes.
Se perguntarem à opinião pública, em países árabes: vocês querem, por exemplo, que nosso país apoie Israel, defenda Israel, estabeleça vínculos de defesa e vigilância com Israel, a maioria das pessoas dirá que não.
Vimos a erupção dessa raiva popular durante a Primavera Árabe, em 2011, 2012, em diante. Sabemos que a Primavera Árabe foi brutalmente esmagada.
Mas como eu digo em meu livro “Laboratório Palestina” (em pré-lançamento pela Editora Elefante), uma das principais razões pelas quais Israel está estabelecendo cada vez mais vínculos com o mundo árabe, e o motivo pelo qual a grande maioria das lideranças árabes não nem cortaram relações com Israel, é porque esses países árabes querem a tecnologia de repressão e vigilância que Israel testou na Palestina para reprimir seu próprio povo.
Eles temem seu próprio povo, e temem a possibilidade de algum outro tipo de Primavera Árabe.
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