No último dia 27, foi publicada aqui no Intercept Brasil uma matéria sobre o Centro de Referência Memórias Reveladas, política pública criada em 2009, no Arquivo Nacional, para tratar dos arquivos da ditadura.
A reportagem revelava o gravíssimo caso da servidora Inez Stampa, ex-coordenadora do órgão. No contexto do desmonte do Memórias Reveladas no governo de Jair Bolsonaro, Inez adoeceu e foi levada a se aposentar.
O texto apontava, ainda, que o desmonte dessa política teria se aprofundado no governo Lula. Diante deste ponto, historiadores elaboraram uma nota, assinada por quase 250 pessoas, que reforça a gravidade do caso revelado e se solidariza com Inez, mas apresenta uma visão diferente acerca do estado atual do Memórias Reveladas.
Para os signatários – e eu me incluo entre eles – está em curso um processo de reconstrução do órgão, que deve ser reconhecido e apoiado.
É fato que a conjuntura é complexa e o cenário para a agenda da memória sobre a ditadura é muito desfavorável. Exemplar disso foi a péssima decisão de Lula de não marcar o sexagenário do golpe de 1964, a qual foi muito criticada publicamente por vários dos signatários da nota.
Memórias Reveladas disponibiliza online um acervo de documentos produzidos por agências repressivas da ditadura com mais de 10 milhões de páginas.
É exatamente por isso que acreditamos fazer pouco sentido minar e colocar em xeque, de antemão, o esforço de um setor do governo de avançar neste debate.
Chamo a atenção particularmente para o fato de que a diretora-geral do Arquivo Nacional, a professora Ana Flávia Magalhães, nomeou, para dirigir essa reconstrução do Memórias Reveladas, duas mulheres cujas trajetórias são de inequívoco compromisso político e acadêmico com a luta por memória, verdade e justiça.
São elas as historiadoras Gabrielle Abreu, que chefia a Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo, à qual o Memórias está vinculado, e Luciana Lombardo, que será a nova coordenadora do Centro de Referência.
LEIA TAMBÉM:
- ‘O desmonte me adoeceu’: chefe de projeto da ditadura no Arquivo Nacional se aposenta e denuncia abandono
- ‘Intensificar as batidas nas favelas’ é uma ordem que sempre marcou a atuação das polícias no Brasil
Este texto, porém, não tem o objetivo de alimentar ou aprofundar essa disputa entre visões divergentes acerca dos rumos do Arquivo Nacional em geral e do Memórias Reveladas em particular.
Ele parte da premissa de que a reconstrução está em curso. Meu objetivo é propor um debate que me parece muito mais relevante neste momento: o que deve fazer uma política pública sobre os arquivos da ditadura hoje? Ou seja, dado que o Memórias Reveladas será recolocado de pé, quais são seus principais desafios e missões?
Uma história pela metade
Entre importantes passos, alguns retrocessos e muitos limites, a questão dos arquivos da ditadura foi uma das que mais avançou dentro das medidas adotadas pelo estado brasileiro para lidar com o seu passado ditatorial.
Segue pendente a necessidade de abrir, na totalidade, os arquivos das Forças Armadas.
Hoje, o Arquivo Nacional, por meio do Memórias Reveladas, custodia e disponibiliza online um impressionante volume de documentos produzidos por agências repressivas do regime. São mais de 10 milhões de páginas.
Os avanços que existiram, porém, sempre estiveram à sombra de uma grande e incontornável questão. As Forças Armadas jamais abriram os seus arquivos. Especialmente os dos centros de informações do Exército, o Cie; da Marinha, o Cenimar; e da Aeronáutica, o Cisa.
Mesmo diante desse obstáculo, esse enorme acervo hoje sob responsabilidade do Memórias Reveladas tem usos fundamentais, nos âmbitos jurídicos, acadêmicos e políticos.
Os documentos servem como material probatório tanto em processos judiciais quanto nas comissões de reparação e da verdade; como base para uma historiografia diversa e rica sobre o período; e para a construção de exposições, filmes, documentários e reportagens acerca da ditadura militar.
Não à toa, portanto, o Arquivo Nacional e o Memórias Reveladas foram alvo dos ataques bolsonaristas. No rastro de destruição das políticas públicas, o Centro de Referência foi completamente esvaziado, como mostrou o Intercept.
Mas agora, neste cenário de reconstrução, o que pode e o que deve fazer uma política pública sobre os arquivos da ditadura?
A primeira e mais evidente questão é que segue pendente a necessidade de abrir, na totalidade, os arquivos das Forças Armadas. O estado não pode seguir aceitando, sem questionamentos ou investigações mais profundas, as justificativas inverossímeis fornecidas historicamente pelos militares, segundo as quais não haveria mais arquivos a serem abertos.
Ocorre que essa decisão não cabe ao restrito escopo do Memórias Reveladas ou mesmo do Arquivo Nacional. Ela demandaria a vontade e a iniciativa política de outros atores do governo, os quais não têm demonstrado interesse em avançar nesta agenda.
O que fazer com os arquivos da ditadura?
Nesse sentido, penso que, sem abrir mão de fortalecer as demandas históricas não atendidas dos movimentos sociais, caberia ao Memórias Reveladas conduzir um esforço de repensar e ampliar os sentidos dessa agenda de lutas pela abertura dos arquivos da ditadura.
Hoje sabemos que a ditadura realizou o mais amplo programa de remoções forçadas de favelas da história, removendo mais 140 mil moradores.
Penso em pelo menos dois eixos que poderiam guiar uma atuação do Memórias Reveladas em novos termos, que inclusive fariam com que a importância dessa política pública para a democracia brasileira se tornasse ainda maior.
Em primeiro lugar, trata-se de ampliar o escopo de compreensão sobre o que e quais são os documentos da ditadura. Em segundo lugar está a necessidade de enfatizar fortemente o esforço de difusão, ou seja, dos usos públicos desses arquivos, com vistas a enfrentar o negacionismo acerca daquele período.
Sobre o primeiro ponto, a grande transformação nos debates acadêmicos e políticos sobre a ditadura militar na última década diz respeito à incorporação de novos sujeitos e personagens nas histórias e memórias daquele período.
Investigações e pesquisas acerca da violência perpetrada pelo regime autoritário contra os povos indígenas, as mulheres, os trabalhadores do campo e da cidade, a população LGBTQIA+, a população negra e os moradores de favelas e periferias vêm se multiplicando.
Esses novos olhares têm transformado profundamente a própria concepção acerca do que foi a ditadura militar no Brasil, quais violências caracterizaram aquele regime e quem foram as vítimas das violações de direitos humanos naquele período.
Como exemplo mais notável, podemos citar a mudança regimental da Comissão de Anistia que abriu espaço para a apresentação de requerimentos de anistia coletiva.
Essa novidade resultou, em abril de 2024, em um primeiro julgamento em que o estado brasileiro reconheceu e pediu desculpas pelas graves violações aos direitos humanos perpetradas coletivamente contra os povos indígenas Krenak e Guarani-Kaiowá.
É nesse sentido que defendo que precisamos também ampliar nossa concepção acerca do que são os arquivos da repressão no Brasil.
Em geral, entendemos como documentos da ditadura aqueles arquivos produzidos pelos órgãos oficialmente estabelecidos para conduzir a repressão política stricto sensu, tais como aqueles oficialmente constantes do Sistema Nacional de Informações, o Sisni. Entre ele estão precisamente os Dops, o SNI, os centros de informações das Forças Armadas.
Outro tipo de grave violação aos direitos humanos foi decorrente da cumplicidade com agentes econômicos, como na produção de ‘listas sujas’.
Ocorre que essas pesquisas recentes vêm demonstrando que a dinâmica das graves violações aos direitos humanos desses distintos grupos sociais variou enormemente, não sendo possível restringir a responsabilidade pela violência a essas agências estatais específicas.
Para exemplificar, podemos pensar que se a violência contra a população LGBTQIA+ nas ruas das cidades e a violência contra a população negra nas favelas e periferias passava necessariamente pelas polícias militar e civil, então a íntegra dos acervos dessas instituições – e não apenas seu braço de polícia política – devem ser vistos como arquivos da ditadura.
Um esforço coordenado de recuperação, recolhimento, tratamento e disponibilização dos arquivos das polícias relativos aos anos 1960 a 1980, portanto, poderia ampliar sobremaneira nosso conhecimento sobre as violências do regime autoritário.
Para além das polícias, ao considerar a natureza de classe do regime, devemos pensar na necessidade de acessar os arquivos dos órgãos estatais que conduziram as políticas públicas excludentes e violentas no período.
A título de exemplo, hoje sabemos que a ditadura realizou o mais amplo programa de remoções forçadas de favelas da história, promovendo o deslocamento forçado de mais 140 mil moradores dessas áreas.
Os acervos dos órgãos públicos estruturados para conduzir essas remoções – nomeadamente o Banco Nacional de Habitação, o BNH, e a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana, a Chisam, vinculada ao Ministério do Interior – certamente nos permitiriam compreender de forma muito mais aprofundada e detalhada a extensão desse processo que representou, por si só, uma profunda violência contra os moradores de favelas.
Indo ainda mais além, é preciso considerar que parte da violência do regime foi operada a partir de suas margens, e não de órgãos oficiais. Entidades paraestatais, tais como esquadrões da morte, grupos de extermínio e milícias privadas operaram sob conivência do estado e com a participação de agentes estatais para promover gravíssimas violações aos direitos humanos.
É evidente que tais organizações não atuavam sob a mesma lógica das agências oficiais, e portanto não produziam documentos ou registros de qualquer natureza. Não há, nesse sentido, por óbvio, algo como um arquivo do esquadrão da morte.
Havia uma certa crença de que a mera revelação da verdade sobre os anos de chumbo seria capaz de produzir o repúdio à tortura e ao autoritarismo. Isso se mostrou ingênuo.
No entanto, se considerarmos que elas foram fundamentais para o aparato de violência do regime, torna-se necessário, então, buscar registros que possam nos auxiliar na compreensão de sua atuação.
Um caminho profícuo para atestar a dinâmica de atuação dos grupos de extermínio, por exemplo, seriam os arquivos dos Institutos Médicos Legais responsáveis pela realização de perícias nos locais de localização de cadáveres.
Outro tipo de grave violação aos direitos humanos ocorrida na ditadura foi aquela decorrente da cumplicidade entre agentes econômicos e o regime. Investigações recentes têm comprovado, a partir do mergulho nos acervos já existentes, que os vasos comunicantes entre os setores de segurança das empresas privadas com os órgãos estatais eram muitos.
Isso se desdobrava, por exemplo, na produção de “listas sujas” por parte das empresas, as quais eram enviadas para agências estatais de repressão.
Em alguns casos, mais do que vasos comunicantes, o que havia era uma verdadeira sobreposição de funções – como no caso da empresa Folha de S. Paulo, em que delegados do Dops ocupavam cargos de liderança na empresa, especialmente no seu setor de segurança.
Ora, isso significa que, se não é possível compreender a violência contra os trabalhadores sem que se leve em conta a cumplicidade de agentes econômicos com o regime, então os acervos das empresas apoiadoras da ditadura devem ser entendidos como documentos da repressão.
Ressalta-se, nesse caso, a existência de empresas públicas à época dos fatos que foram posteriormente privatizadas, como é o caso exemplar da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN. Dada a natureza pública da documentação relativa ao período da ditadura, seria fundamental que se garantisse amplo acesso a ela, nos termos da Lei de Acesso à Informação.
Os acervos das empresas apoiadoras da ditadura devem ser entendidos como documentos da repressão.
Difundir os crimes da ditadura para o grande público
O segundo eixo que entendo ser fundamental para nortear uma política sobre o tema é a questão da difusão. Ou seja, para além de ampliar o olhar sobre quais documentos devem ser pensados como arquivos da ditadura, o Memórias Reveladas pode e deve conduzir um trabalho ativo de transformação dos documentos em instrumentos na disputa pela memória coletiva sobre o período.
O uso dos documentos em filmes, séries, documentários, exposições e salas de aula tem uma importância fundamental para a construção de uma memória crítica acerca da ditadura militar.
Assim, iniciativas estatais voltadas para o fomento e o financiamento desses usos públicos e pedagógicos dos arquivos da repressão, tais como a publicação de editais e chamadas públicas, são fundamentais.
Essa dimensão é chave no momento presente. Por muito tempo, houve uma certa crença compartilhada de que uma revelação objetiva da verdade sobre os anos de chumbo seria capaz de produzir o repúdio à tortura e ao autoritarismo.
Ou seja, os depoimentos e documentos falariam por si só – quando as pessoas entrassem em contato com o horror e a barbárie perpetrada pelo estado naquele período, revelados pelas políticas públicas democráticas, elas imediatamente se colocariam contra as violações. Isso de certa forma está expresso no próprio nome do Centro de Referência.
Essa crença se mostrou completamente ingênua. Foi exatamente durante o trabalho da Comissão Nacional da Verdade que o negacionismo sobre a ditadura ganhou força no Brasil.
Não é por desconhecimento do que foi o regime autoritário que as pessoas votaram em um presidente que elogiou o maior torturador do período. Do contrário: setores da sociedade se identificam com esses valores e os reivindicam abertamente.
Nesse sentido, não se pode esperar que os arquivos falem por si. Hoje temos convicção de que muitas pessoas seriam capazes de olhar um documento do Exército sobre um crime cometido por um militar na época e tomá-lo como um monumento, como algo a ser celebrado.
Nesse sentido, na atual conjuntura, mais do que revelar memórias, o papel do Centro de Referência deve ser o de promover um trabalho, uma pedagogia e uma política em torno das memórias. Assim, esse volumoso acervo custodiado pelo Arquivo Nacional poderá cumprir um papel fundamental na construção e na difusão de um olhar crítico ao autoritarismo.
Com isso, o Memórias Reveladas voltará a desempenhar o papel de órgão fundamental para o fortalecimento e a consolidação da nossa democracia.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?