Como de costume, começo esse texto com uma rápida digressão sobre o passado. Mais especificamente, sobre o conteúdo de um livro publicado há pouco mais de três séculos.
A “Ética demonstrada à maneira dos geômetras”, ou a “Ética de Espinosa”, é uma obra de 1677, publicada poucos meses após o falecimento de seu autor, o filósofo Baruch de Espinosa. O livro, não sem motivos, é considerado como a sua obra máxima, e nos apresenta um verdadeiro tratado sobre a natureza de Deus e a origem da moral ocidental.
A obra foi criticada e banida pela Igreja Católica, sendo considerada pelos censores como uma espécie de “manifesto ateu”, e taxada como um amontoado de blasfêmias proferidas por um inimigo “histórico” do cristianismo; a família de Espinosa, judia, foi perseguida pela inquisição portuguesa.
E esta não foi a primeira punição religiosa do filósofo por conta de suas ideias controversas sobre a bíblia judaica, aos 23 anos de idade, ele foi alvo de um chérem, isto é, foi expulso da comunidade judaica de Amsterdã, da qual fazia parte. Inclusive, foi renegado pela sua própria família.
Mas o que havia de tão controverso nas ideias de Espinosa que lhe garantiram o desprezo de judeus e cristãos?
Para além de suas teses metafísicas sobre a natureza do real e a substância divina, o aspecto mais escandaloso da Ética talvez seja a denúncia da chamada trindade moralista, os alicerces da moral e da política ocidental.
A saber, o escravo, o tirano e o padre.
Importante dizer que o escravo de Espinosa não é a pessoa que foi obrigada, por meio da violência ou da força, a se sujeitar ao poder de outrem, mas o indivíduo “livre” que se subordina por conta de seus próprios valores, por conta de suas “paixões tristes”. O tirano, por sua vez, é aquele que explora essas paixões para governar, enquanto o padre é o próprio porta-voz de toda essa estrutura moral.
Há um vínculo profundo e implícito entre esses três personagens: o grande trunfo do tirano não é subjugar seus vassalos, o escravo, por meio da força, mas por meio de temores e promessas dissimuladas sob a forma de uma religião ou de um sistema moral.
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Promessas e temores que o próprio escravo defende em nome de recompensas futuras, o céu, a prosperidade material, a ascensão social, etc.… O que os une é, justamente, o medo daquilo que lhes escapa, a própria liberdade.
O tirano teme a liberdade, pois ela inscreve um limite para os seus poderes, enquanto o escravo a teme por medo da providência divina, da sanção da própria sociedade. E nessa estrutura, a igreja e a sinagoga teriam um papel crucial, pois seriam elas as responsáveis por deprimir o povo e recrudescer o seu pensamento, impedindo-o de imaginar um mundo para além do medo, da tristeza.
Isso lhe parece familiar?
Pois então voltemos ao presente, mais especificamente, para os eventos das últimas semanas, quando a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, mais conhecido como PL da Gravidez Infantil ou PL do Estupro.
Até mesmo os evangélicos desaprovam o PL do Estupro. Apenas 37% deles concordam com o PL.
É uma proposta obtusa que equipara a interrupção de gestações acima de 22 semanas — direito previsto em lei desde 1940 para casos de estupros, riscos à pessoa gestante ou anencefalia — ao crime de homicídio. Inclusive, prevendo penas maiores para a pessoa gestante do que para o seu agressor no caso de um estupro.
Felizmente, a manobra política acabou gerando o efeito reverso do pretendido e deu início a uma ampla mobilização social puxada por grupos feministas que contou, inclusive, com o apoio, ainda que tímido, de atores inesperados, como o apresentador Luciano Huck.
Apesar do fracasso e do recuo momentâneo, a estratégia da direita brasileira está cada vez mais cristalina: promover o recrudescimento. Recrudescimento não apenas da política, mas, por meio dela, o recrudescimento da própria imaginação da população brasileira, tornando-a cada vez mais afeita e aninhada em seus discursos conservadores extremistas.
De fato, ao contrário do que se imagina, a população brasileira não está tão alinhada com a política conservadora. Para que se tenha uma ideia, a pesquisa Datafolha sobre a PL do Estupro aponta que a maior parte da população não aprova a medida: 66% é contra.
Até mesmo os evangélicos, costumeiramente apontados como mais suscetíveis a esse discurso, desaprovam a ideia. Apenas 37% desse segmento concorda com o projeto de lei.
E por isso mesmo, políticos da direita lutam tanto para controlar políticas educacionais, políticas de saúde pública e o acesso a informações. Eles sabem que, por meio dessas ferramentas, podem trabalhar diretamente no imaginário da população, tornando-a cada vez mais receptiva ao seu projeto de poder.
De fato, quando olhamos bem, percebemos que esse projeto de lei não é “apenas” sobre o aborto em si ou sobre o controle dos corpos de pessoas com útero, é também sobre o controle do próprio imaginário social a respeito dessas pessoas.
E, a partir disso, desse espaço, estabelecer o controle sobre aquilo que se pensa e imagina sobre outros temas. Como os fascistas do passado – vide o regime de Mussolini -, almejam, por meio do controle das pessoas com útero, das mulheres, construir e consolidar um único modo de existência.
Obviamente, um modo de existência controlado por eles.
Essa direita se alimenta do medo, da tristeza e da culpa da população.
Aproveitam-se, inclusive, do histórico descaso da esquerda partidária, em especial dos governos petistas, para alavancar o seu domínio sobre estas pastas. Enquanto essa esquerda se foca apenas na manutenção de sua política desenvolvimentista, a direita avança sobre (e sob) a subjetividade da população.
Espalhando a sua mensagem por meio das igrejas, por meio da desinformação, mas também por meio (ou pela falta) de políticas públicas voltadas para o tema. Avançam no seu projeto de construir um regime de medo, de temores e sujeitos deprimidos que são verdadeiramente incapazes de imaginar uma outra forma de viver.
Eles sabem que a própria ideia de que uma gravidez possa ser interrompida, independente do motivo, é capaz de suscitar uma série de questionamentos que ameaçam esse projeto de poder.
Eles sabem que o aborto é, em si mesmo, uma ideia poderosa, pois ele nos diz algo muito importante sobre a autonomia e a liberdade dessas pessoas que, historicamente, são oprimidas pelo sistema.
Tal como os tiranos de Espinosa, o poder dessa direita se alimenta do medo, da tristeza e da culpa da população. E por esta razão, temem tanto a liberdade. Em especial, a liberdade daquelas pessoas cuja opressão é um dos principais alicerces de todo esse sistema.
Por isso temem tanto a liberdade das mulheres, das pessoas com útero. Eles sabem o que ela verdadeiramente representa.
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