Esta investigação, conduzida pelo grupo Repórteres Árabes pelo Jornalismo Investigativo, faz parte do Projeto Gaza, uma colaboração que envolve 50 jornalistas de 13 organizações, coordenadas pela Forbidden Stories
“Ataque à torre al Ghefari, onde ficam escritórios de imprensa, oeste da Cidade de Gaza”, dizia a legenda da Alhurra TV, uma emissora árabe do governo dos EUA, pouco antes das 11h57, hora local, em 2 de novembro. O canal estava cobrindo o ataque a um edifício de 18 andares, o mais alto na Faixa de Gaza. O edifício estava visível no canto esquerdo da tela, quando de repente uma explosão sacodiu a imagem. Detritos e fumaça voaram ao vivo na câmera. O apresentador, sem entender o que aconteceu, disse: “ainda não sabemos onde foi esse ataque, mas aconteceu ao vivo agora”.
O que o apresentador não sabia era que os telespectadores estavam assistindo ao vivo na TV um ataque a outra organização de imprensa, a Agence France-Presse, AFP, menos de uma hora depois do que ocorrera nos escritórios do Palestine Media Group na torre al-Ghefari — o edifício que a Alhurra TV estava mencionando enquanto assistia à transmissão ao vivo da AFP. A AFP ocupa o 10º e o 11º andares do edifício de 12 andares Haji Tower, a apenas algumas centenas de metros de distância, na mesma rua.
A Alhurra transmitiu o ataque ao vivo, não porque tivesse sua própria câmera no prédio, mas porque a rede estava ligada a uma transmissão ao vivo da AFP de uma câmera montada na varanda do 10º andar. O ataque causou danos extensos aos edifícios e escritórios: um grande buraco em um dos lados do edifício, e significativa destruição da parte interna. Felizmente, não havia ninguém lá. A equipe de oito pessoas da AFP na Cidade de Gaza havia fugido do edifício, deixando para trás uma câmera praticamente sem intervenção humana, alimentada por painéis solares, com transmissão ao vivo em tempo integral. A AFP era a única das três principais agências de notícias internacionais que ainda estava transmitindo ao vivo da Faixa de Gaza.
A agência entrou imediatamente em contato com os militares israelenses. A resposta inicial foi de que não teriam acontecido ataques ao edifício. O representante de Israel, pressionado para fornecer mais detalhes, informou que o exército havia realizado um ataque nas proximidades que “poderia ter causado destroços”, mas que “o prédio não foi alvo de ataque de forma alguma”. A AFP declarou que a extensão do dano não poderia ser explicada pela resposta dos militares, e solicitou “uma investigação aprofundada e transparente”.
As reações vieram logo. Fabrice Fries, presidente e diretor executivo da AFP, disse que a localização do escritório era conhecida e comunicada frequentemente às forças de defesa israelenses, “exatamente para evitar um ataque desse tipo e nos permitir continuar a transmitir imagens do local”. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas, CPJ, emitiu um comunicado classificando o ocorrido como um “ataque direto”. A Federação Internacional de Jornalistas exigiu “uma investigação imediata”.
Após o ataque, no início de novembro, a guerra em Gaza se intensificou, e o número de palestinos mortos, atualmente calculado em mais de 37 mil, continuou a aumentar. A escala da destruição foi além das expectativas de qualquer pessoa.
O incidente com a AFP foi praticamente deixado de lado até que a organização Repórteres Árabes pelo Jornalismo Investigativo, ARIJ, começou a analisá-lo dentro do Projeto Gaza: uma colaboração entre 50 jornalistas de 13 organizações de imprensa, coordenada pela Forbidden Stories, para investigar ataques contra jornalistas e infraestrutura de imprensa em Gaza e na Cisjordânia.
A investigação durou quatro meses, e revelou que, ao contrário do que alega o exército israelense, o escritório da AFP foi alvejado diretamente pelos tanques de Israel. Os tanques dispararam quatro vezes em 2 de novembro, entre 11h55 e 12h09, hora local, de aproximadamente 3 km de distância.
Pelo menos dois disparos atingiram o escritório da AFP, que foi destruído e ficou inutilizável.
As conclusões da investigação se basearam em análises visuais independentes das imagens ao vivo, realizadas pelos veículos Le Monde e Paper Trail Media. Elas foram confirmadas por especialistas em armas e outros assuntos. Os resultados coincidiram com as conclusões de uma análise de áudio realizada pela Earshot, uma organização especializada em investigações forenses de áudio.
‘O tipo de arma e a precisão inerentes ao sistema de armamento dos tanques israelenses significam que a arma atingiu o alvo a que se destinava. Continua sem resposta a pergunta: por quê?’
Adrian Wilkinson, um engenheiro forense especializado em explosivos, que trabalha regularmente para a ONU, diz que “é praticamente certo que o escritório da AFP foi alvo do ataque de um tanque israelense”. Pelo menos outros cinco especialistas, entre eles War Noir, pesquisador independente especialista em armas e conflitos, e Trevor Ball, ex-técnico de desativação de explosivos no exército americano, concordaram. Ball diz que os danos na sala do servidor são consistentes com disparos de tanque.
Wilkinson descartou a possibilidade de um tiro acidental. Ele está convencido de que os soldados que operavam os tanques de Israel tinham intenção de atingir exatamente aquele andar. “O tipo de arma e a precisão inerentes ao sistema de armamento dos tanques israelenses significam que a arma atingiu o alvo a que se destinava”, diz. “Continua sem resposta a pergunta: por quê?”
Um elemento-chave da investigação foi uma série de clarões de luz que aparecem 4 segundos antes da explosão nas imagens ao vivo. Os clarões são disparos de tiros. Um cálculo feito a partir da análise dos clarões e das detonações concluiu que foram disparados a cerca de 3 km de distância. Uma análise mais aprofundada da velocidade e das características da munição levou à conclusão de que foram disparados por um tanque. Apenas Israel tem tanques em Gaza.
Imagens da torre al-Ghefari, o primeiro edifício atingido naquele dia, mostram tanques israelenses nas proximidades em 1º de novembro. Imagens de satélite da Planet Labs em 31 de outubro e 3 de novembro mostram centenas de tanques a poucas centenas de metros ao norte da área suspeita de disparo, com rastros de tanque visíveis no entorno. Imagens de satélite não mostram tanques nos dias anteriores.
Em 2 de novembro de 2023, Israel anunciou a conclusão do cerco à Cidade de Gaza, que se tornou então uma cidade sitiada.
Em uma resposta escrita ao consórcio jornalístico, os militares de Israel insistiram que não teria havido ataque ao edifício em 2 de novembro, e que o escritório da AFP não fora alvo.
AFP Notificou Militares
A AFP considerou que havia tomado todas as precauções necessárias para proteger seu escritório quando a guerra começou. A agência de notícias já tinha um escritório em Gaza há 30 anos, e estava familiarizada com os protocolos. A AFP frequentemente compartilhava o endereço do escritório e suas coordenadas no Google Maps com os militares israelenses, uma prática comum dos veículos de comunicação estrangeiros na Palestina. Só em outubro, os representantes da AFP lembraram quatro vezes aos militares a localização do escritório, no edifício Haji Tower, na Cidade de Gaza.
Em 9 de outubro de 2023, a agência de notícias enviou uma carta de seu presidente solicitando aos militares “extrema vigilância em relação à segurança de nossa equipe em Gaza”, especialmente após um incidente em que um pedaço de projétil caiu no terraço do prédio. Naquela mesma noite, a Associação da Imprensa Estrangeira solicitou a localização do escritório da AFP para compartilhar com os militares de Israel, como vinha fazendo com as organizações integrantes. A associação confirmou à AFP que havia compartilhado a informação com o exército.
Apesar de todos os esforços, nas primeiras horas do dia 10 de outubro um funcionário do escritório em Gaza informou a Marc Jourdier, chefe do escritório da agência em Jerusalém, sobre uma ligação dos militares israelenses para um morador local determinando a evacuação do edifício. “Não percam um minuto e vão embora”, disse Jourdier ao funcionário. “Estou ligando para o exército e retorno o mais rápido possível para você.”
Jourdier entrou em contato com os militares e mandou novamente as coordenadas do escritório. Às 2h26 da madrugada, um forte ataque atingiu um prédio menor nas redondezas. Várias pessoas foram mortas, incluindo três jornalistas que estavam em frente ao edifício para cobrir o ataque esperado contra o Haji Tower, que nesse momento já havia sido esvaziado. Um porta-voz de Israel informou a Jourdier que havia conseguido impedir o ataque “graças à ligação”.
O quadro completo do que aconteceu naquela noite ainda não está claro. Na resposta apresentada ao consórcio, os militares israelenses disseram que o alvo eram instalações usadas por um integrante do Hamas, mas não explicaram por que uma ordem de evacuação havia sido emitida para o edifício onde ficava a AFP.
Em 28 de outubro, cinco dias antes do ataque ao escritório da AFP, Jourdier enviou mais uma vez a localização do escritório.
“Importância das Transmissões Ao Vivo”
As conclusões da investigação foram apresentadas a Irene Khan, relatora especial da ONU sobre liberdade de expressão e de opinião, que respondeu: “segundo a legislação humanitária internacional, a infraestrutura de imprensa é infraestrutura civil, e atacá-la é potencialmente um crime de guerra”.
“Não estou surpresa”, disse Shuruq As’ad, jornalista e representante do Sindicato dos Jornalistas Palestinos. Mas ela está irritada. “Este é um ataque claro e direto contra um escritório de imprensa.” E acrescentou: “Israel sabe da importância das transmissões ao vivo, especialmente das agências de notícias, e como elas são importantes para a imprensa internacional que usa esses serviços”. O sindicato documentou a destruição total ou parcial de 73 escritórios de imprensa desde outubro.
Phil Chetwynd, diretor global de notícias da AFP, diz que Israel precisa explicar sua política sobre as transmissões ao vivo, e se elas são consideradas “de alguma forma” alvos legítimos, “porque há indícios circunstanciais suficientes para nos despertar suspeitas de que é assim que estão agindo”. Ele acrescenta: “realmente precisamos de respostas, e no momento, não as temos”.
As “Forças de Defesa de Israel (FDI) têm um histórico de ataques contra os veículos de comunicação”, diz Carlos Martínez de la Serna, diretor de programa do CPJ. Ele apontou para incidentes anteriores, incluindo a destruição de pelo menos 20 veículos de comunicação em 2021, como o edifício que abrigava a Associated Press e a Al Jazeera. Ele reiterou que isso faz parte de um padrão que reflete a “falta de responsabilização” no que se refere aos ataques dos militares israelenses contra veículos de comunicação. “Não é como se fosse possível cometer um erro com facilidade”, diz. “Israel sabe tudo sobre Gaza.”
51 Minutos Antes…
Ao analisar a transmissão ao vivo da AFP para sua investigação, a Repórteres Arabes Ao analisar a transmissão ao vivo da AFP para sua investigação, a ARIJ e seus parceiros descobriram imagens do ataque anterior contra o escritório do Palestine Media Group, ou PMG, no edifício al-Ghefari, 51 minutos antes que o primeiro disparo atingisse a AFP. Mostramos a filmagem à Earshot.
“Esse ataque também contém uma sequência de eventos semelhante aos quatro disparos contra a sala do servidor: um clarão de disparo na mesma área que o clarão observado nos quatro outros disparos”, concluíram os analistas da Earshot.
Existem outras semelhanças e diferenças dignas de nota entre os ataques contra o PMG e a AFP. Os escritórios de ambas as organizações de imprensa, separados por algumas centenas de metros, foram alvo de disparos por tanques israelenses no mesmo dia, com uma hora de diferença. Ambos tinham câmeras transmitindo ao vivo de Gaza.
Embora não houvesse ninguém no escritório da AFP no momento do ataque, quatro pessoas, incluindo dois jornalistas, que depois narraram o incidente para a ARIJ e seus parceiros, estavam no 16º andar no edifício al-Ghefari. Um deles sofreu um ferimento na perna.
Na manhã de 2 de novembro, Ismail Abu Hatab, jornalista freelancer que vinha dormindo no escritório do PMG, fez seu café e ligou o computador para terminar de enviar sua filmagem da noite anterior. “Eu peguei a câmera e depois não vi nada, não conseguia ouvir nada, tudo o que me lembro é de uma linha amarela de luz”, conta. Uma parede desabou sobre Abu Hatab, e a força da explosão jogou Abed Shanaa, o outro jornalista que estava lá naquele dia, contra a parede oposta.
Abu Hatab perdeu a consciência por alguns instantes, e então se deu conta do que havia acontecido. “Eles nos atacaram diretamente. Eles atacaram o andar onde estávamos”, diz. Shanaa correu para tirar Abu Hatab debaixo dos escombros, temendo que viesse outro ataque. Foi o filho de Shanaa, Haitham, de 20 anos, que tirou Abu Hatab dos escombros. Não havia elevador porque a energia do prédio havia acabado mais cedo, então Haitham desceu carregando Abu Hatab por 16 lances de escada.
O PMG ocupava todas as quatro salas naquele andar, o que oferecia uma vista panorâmica de 360 graus de Gaza. “Do lugar de onde tiro fotos, eu via Gaza inteira”, diz Abu Hatab. O PGM instalou câmeras em todos os quatro lados, e oferecia serviços de transmissão ao vivo, inclusive para a Reuters e a Al Arabiya TV.
Hassan al Madhoun, presidente do PMG, conta que alguns dias antes do ataque, em 30 de outubro, tanques israelenses foram vistos pelas janelas voltadas para o norte. Shanaa confirma que estava visíveis em pelo menos duas câmeras. Imagens transmitidas do al-Ghefari no dia anterior ao ataque mostravam tanques israelenses nas proximidades. O vídeo estabelece uma linha de visão entre o edifício e a área determinada pela análise audiovisual como o local de onde partiram os disparos dos tanques. Imagens de satélite mostraram rastros de tanques visíveis no dia seguinte, onde antes não havia nenhum.
Em uma resposta por escrito ao consórcio, os militares de Israel disseram não ter conhecimento de um ataque no local e na data informados.
Após deixar o edifício, Shanaa levou Abu Hatab para o hospital para receber atendimento. Abalado pelo que havia acabado de acontecer, Shanaa decidiu seguir para o sul de Gaza naquele dia. No dia seguinte, al Madhoun, que não estava no escritório no momento do ataque, voltou para salvar qualquer equipamento que pudesse. Ele fez um vídeo do estrago.
Em algum momento entre 25 de novembro e 3 de dezembro, o al-Ghefari foi atingido novamente, desta vez causando danos mais graves à estrutura, e partes dos três andares superiores desabaram completamente.
‘Investigações ou respostas à morte de um jornalista normalmente só acontecem quando é atingido um jornalista ou uma organização de imprensa internacional.’
Embora tanto a AFP quanto o PMG teham sofrido ataques semelhantes naquele dia, uma diferença importante entre os veículos de comunicação salta aos olhos: o PMG é um veículo palestino local, e a AFP é uma organização francesa internacional. Embora o jornalista tenha sido ferido no ataque ao PMG, foi o ataque contra o escritório vazio da AFP que atraiu a atenção internacional e mereceu uma resposta de Israel.
Martínez de la Serna, do CPJ, considera que se trata de mais um padrão. “Investigações ou respostas à morte de um jornalista normalmente só acontecem quando é atingido um jornalista ou uma organização de imprensa internacional”, diz. “Para os jornalistas locais, a resposta típica é o uso como propaganda e nada mais.”
As’ad, do Sindicato de Jornalistas Palestinos, manifestou frustração diante do fato de que a comunidade internacional não dá a mesma importância à segurança dos jornalistas locais. “Para nós”, ela explica, “o crime de atacar veículos de comunicação é o mesmo, seja a AFP, a Reuters, ou veículos árabes e locais.”
Em 12 de novembro, às 10h31 da manhã, a transmissão ao vivo da câmera da AFP, que continuara funcionando após o ataque, foi interrompida definitivamente. Não havia ninguém disponível para reiniciar o sistema de transmissão. Foram as últimas imagens ao vivo de uma agência internacional de notícias em Gaza.
A interrupção marcou o final de uma via para coleta de informações importantes. “Onde há forte potencial de que um crime de guerra seja cometido, obviamente, a transmissão ao vivo se transforma em prova crucial”, diz Khan, a relatora especial da ONU.
Al Madhoun, o presidente do PMG, observou que sua organização estava fazendo uma transmissão ao vivo sem interferência, uma realidade sem filtro e sem comentários.
“Mas as imagens pareciam incomodar Israel”, diz.
Com contribuições adicionais de Arthur Carpentier, do Le Monde; Ga@le Faure, Marc Jourdier, Sarah Benha, Beno, Toussaint e Jean-Marc Mojon, da AFP; Léa Peruchon e Walid Batrawi, da Forbidden Stories; Christo Buscheck, Maria Retter, Maria Christoph, Dajana Kolling e Frederik Obermaier, da Paper Trail Media; e Manisha Ganguly, do The Guardian.
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