Fabiana Moraes

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 ‘Eu apenas cumpro as ordens’: Documentário mostra banalização da violência policial

Gravado em Pernambuco, filme acompanhou policiais durante o chamado ‘adestramento’, treinamento com humilhação e até tortura.


“Eu apenas cumpro as ordens”. Durante as quase duas horas do documentário “Por trás da linha dos escudos”, do jornalista e cineasta Marcelo Pedroso, escutamos a mesma frase vinda de policiais militares diversos.

Derrubando moradias de gente muito pobre, espirrando gás de pimenta no rosto de manifestantes ou descarregando bala em áreas periféricas, a explicação é a mesma: são apenas agentes públicos com poder de fogo, a maioria homens, executando uma ordem vinda de cima.

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Essa tecnicalidade parece não só higienizar os atos de violência cometidos pela PM, mas traça uma separação poderosa entre iguais: de um lado, um preto de origem humilde. Do outro, um preto de origem humilde. A diferença é que um deles está armado, de farda e “apenas cumprindo ordens”.

O processo de certa desumanização pela qual passa a polícia militar é um dos maiores destaques do filme que Pedroso disponibiliza fora da sala dos cinemas, pela primeira vez, aqui.

É a segunda montagem de “Por trás da linha dos escudos”, lançado pela primeira vez em 2017 nos festivais de cinema de Cachoeira (BA) e Brasília (DF). O filme, que aborda o Batalhão de Choque pernambucano, provocou muitas críticas e foi tirado de circulação: para muita gente, o cineasta havia se tornado cordato demais com uma força policial conhecida por sua truculência e racismo.

Depois de seis anos sendo repensado e refeito, o filme continua caminhando dentro de uma lógica cada vez mais difícil de ser tocada no ambiente social conflagrado, a da ambiguidade.

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Como, afinal, se aproximar de um força caracterizada por sua alta letalidade e que ao mesmo tem como maior vítima fatal os soldados negros? Como ouvir uma PM que, segundo o capitão e sociólogo Fábio França, foi criada para perseguir preto e pobre?

Conversei com Marcelo Pedroso – que também lançou um livro sobre relações de antagonismo no documentário – sobre o difícil exercício de humanizar aquele que tantas vezes se apresenta como nosso inimigo. 

Intercept Brasil – O que essencialmente mudou do primeiro filme para o corte que vemos agora? Que cineasta montou o primeiro documentário e que cineasta montou a segunda versão? 

Entre a primeira versão, lançada em 2017, e a segunda, de 2023, foram seis anos de trabalho em que eu e Ernesto de Carvalho, montador do filme, nos empenhamos em construir uma linguagem que nos parecesse adequada para interpelar os policiais e colocar questões políticas em perspectiva, mas dentro de um terreno discursivo de alta tensão.

Então foi um processo de erros, acertos, tentativas e ajustes – um processo que não pretende chegar a um lugar de resolução mas permanece ciente de seu caráter experimental, com sua precariedade e seus limites.

A principal mudança entre a primeira e a segunda versão do filme diz respeito à qualidade da narração em off.

 Na primeira versão, a locução acabava se tornando algo muito hermético, que evocava por exemplo trechos da legislação relacionada à bandeira do Brasil, mas que não oferecia chaves mais concretas para se interpretar o objetivo do documentário.

Na segunda versão, a gente construiu uma locução onde eu comento o processo do filme, exponho as questões que me moviam, apresento de maneira mais explícita minha posição e meu entendimento sobre o papel da polícia, faço apontamentos sobre os limites encontrados e por aí vai.

A ideia era criar uma camada que, por um lado, dissolvesse a impressão de ambiguidade que podia surgir da primeira versão e, por outro lado, possibilitar uma reflexão mais apurada acerca do que enxergamos como os problemas representados pela militarização da polícia.

Não é entre a classe média branca que a corporação arregimenta seus quadros, mas nas periferias.

Com relação às mudanças que ocorreram em mim, acho que o processo do filme levou a uma auto-reflexividade crítica bastante acentuada, tanto em função da tensão suscitada pelo tema, como pelos questionamentos de que a primeira versão foi objeto e pelo longo período da revisão.

Foi um momento importante por exemplo para me racializar e passar a compreender melhor como o racismo atua como elemento estruturante transversalmente a todas às as relações sociais.

 A revisão do filme coincidiu também com a pesquisa de doutorado que eu estava desenvolvendo e meu ponto era justamente as relações de antagonismo no campo documental. Então foi um momento de muitos estudos e aprendizados, dentro de um horizonte em que teoria e prática se aproximavam constantemente. 

O filme parte de uma perspectiva conhecida no cinema, a ideia de “filmar o inimigo”. Como pensar esse aspecto em relação a uma PM cuja base é fortemente negra e de origem humilde ou de classe média baixa?   

Acho que esse paradoxo de uma força policial formada em sua maioria por homens negros treinados para exercer controle social e violência contra outros homens negros é uma das questões mais perversas da polícia brasileira.

Enquanto eu filmava o Choque, eu me lembrei muito de quando fui fazer o alistamento militar obrigatório, ainda no final dos anos 1990. Eu era aquele cara, branco e de uma família de classe média, que estava doido para ser liberado do serviço e poder ingressar na universidade.

Enquanto isso, uma maioria de outros rapazes, negros e vindos das periferias, torciam para serem absorvidos pelas Forças Armadas porque para muitos aquela era das poucas oportunidades de emprego formal e de carreira profissional que tinham. 

Essa lógica se repete no recrutamento que a PM faz de seus quadros, principalmente dos soldados, que é a parte do efetivo que ingressa sem curso superior. Não é entre a classe média branca que a corporação arregimenta seus quadros, mas nas periferias. 

A polícia pode ser a expressão do poder das classes dominantes, mas ela é composta de pessoas que são, em sua origem, alvos da opressão.

Quando se fala que a PM é a polícia que mais mata mas também a que mais morre no mundo, é preciso lembrarmos que as pessoas envolvidas nesta matança são, dos dois lados da trincheira, em sua maioria homens negros e de classe média baixa.

É, como diz o antropólogo Luiz Eduardo Soares, um conflito fratricida. Então quando eu fui filmar a polícia, acredito que eu estava acometido de uma certa confusão relacionada ao entendimento de minha própria condição.

Eu achava, talvez pelo fato de já ter me visto em situações de confronto com o Choque, que poderia ser considerado inimigo da polícia.

Mas essa impressão sempre esbarrava na constatação da origem social dos policiais e nesta seletividade de oportunidades, distribuídas por critérios raciais e de classe, que levam à formação de um contingente policial majoritariamente negro e composto por pessoas das classes subalternizadas.

A polícia pode ser a expressão do poder das classes dominantes, mas ela se personifica em rostos e corpos de pessoas que são, em sua origem, também alvos da opressão.

Isso gera um curto-circuito nas formas de pensar estas relações. Mas quando a primeira versão do filme foi lançada e sofreu uma onda de contestações, vindas principalmente de pessoas negras, eu passei a entender melhor minha própria condição frente à polícia.

De fato, eu não posso ser visto como inimigo da polícia, num certo sentido estrito do termo inimigo, que é uma categoria que enseja relações de letalidade. Eu não faço parte do grupo social exposto à letalidade da ação policial.

 O grupo social que o estado brasileiro, através de sua Polícia Militar, elege como inimigo principal a ser combatido são as populações negras, manifestamente a juventude negra moradora das periferias.

Neste sentido, se pensarmos em termos de branquitude, o campo ao qual eu pertenço é de pessoas que são beneficiadas pela ação policial, sendo esta voltada para a manutenção das desigualdades vigentes em diversos planos, tanto no que diz respeito à propriedade privada e à integridade corporal das pessoas quanto em aspectos intangíveis como dignidade e auto-estima.

Mas é preciso entender que mesmo gozando de algum estatuto de brancura, eu posso ser alguém politicamente posicionado contra a atuação das forças policiais. Neste sentido, a ideia de adversário – e não inimigo – parecia adequada para pensar o tipo de antagonismo que surge entre alguém como eu e a polícia.

Não se trata apenas de cumprir ordens, mas de um sistema que prescreve o uso da violência.

Segundo algumas correntes da ciência política, ao contrário do inimigo, o adversário mantém com seu oponente a possibilidade de um reconhecimento recíproco capaz de instituir um comum entre as partes, gerando interpelações divergentes e conflituosas, mas que não tem o aniquilamento de um dos lados como horizonte.

Do ponto de vista conceitual, esta ideia de adversários me pareceu adequada para circunscrever o gesto político do filme, que busca a crítica à corporação, notadamente em sua dimensão militar, mas tentando manter a interlocução com os próprios policiais.   

No seu filme,  ouvimos os policiais dizendo que “apenas cumprem ordens”. Tecnicamente, eles estão certos. Na sua opinião, o cinema, o jornalismo e outras formas de representação jogam luz demasiada nos agentes que executam as ordens e pouco em quem as determina – na maioria dos casos, juízes, desembargadores? É possível pensar nessa assimetria sem considerar que esses lugares também se diferenciam por classe e cor?

Me parece que a alegação de cumprir ordens, embora tecnicamente verdadeira como você diz, é também um refúgio retórico útil para os policiais quando são expostos ao contraditório.

É uma alegação que remete inevitavelmente à ideia de banalidade do mal, de Hannah Arendt, quando ela apontava para um princípio de diluição do senso de responsabilidade dentro das estruturas burocráticas e hierarquizadas do estado totalitário.

Mas acho que em se tratando da PM brasileira, é um recurso que busca também tentar dissimular o fato, que se tornou mais flagrante depois do 8 de janeiro, de que os policiais agem sim por convicção.

Não se trata apenas de cumprir ordens, mas de atuar em consonância com um sistema de valores que modula o pensar e o agir de boa parte do efetivo e que prescreve o uso de violência seletiva.

É certo que há exceções, pessoas que questionam a legitimidade das ordens e grupos como os policiais antifascistas que defendem uma polícia democrática, mas basta olhar para as fotos dos policiais posando ao lado dos manifestantes pró-impeachment de Dilma Rousseff para entender que eles atuam por alinhamento deliberado às pautas e interesses de setores políticos conservadores.

No que diz respeito à abordagem e representação das pessoas ou setores que determinam as ordens, eu concordo que é um espectro ainda pouco visto. Acho que há um esforço para reverter esse cenário.

Se a gente pensar, por exemplo, no Movimento Ocupe Estelita, houve todo um movimento nos filmes e textos que buscavam dar nome aos bois, apontar o dedo para os grandes grupos econômicos e seus sócios, denunciar a relação imprópria com os poderes políticos, satirizar seus representantes.

Temos também importantes gestos no audiovisual feito nos últimos anos aqui em Pernambuco, como por exemplo filmes de Gabriel Mascaro (Um lugar ao sol) e Joelton Ivson (O grande clube) que retratam as elites, ou o filme de Dea Ferraz (Câmara de espelhos), em que ela filma grupos de homens para fazer uma crítica ao patriarcado.

Porém acho que são gestos que continuam um tanto isolados e me parece que isso se deve muito a uma cultura dominante de realizarmos filmes dentro de horizontes políticos de alinhamento com os sujeitos filmados.

Você acredita que os PMs passam por processos de desumanização (obedecer, e não refletir)? Esse processo consegue explicar parte da fratura social entre policiais negros e pobres e uma sociedade brasileira de maioria igualmente negra e pobre?

Para se tornarem aptos a perpetrar a violência contra pessoas que em princípio possuem os mesmos atributos identitários que eles, os policiais precisam primeiro ser também submetidos, eles próprios, à formas deliberadas de violência. É isso que a corporação faz, a começar pelo próprio treinamento, que dentro da cultura militar é chamado de adestramento.

Humilhações, punições abusivas, maus tratos e até mesmo torturas são alguns dos elementos a que são expostos os policiais. Isso parece servir tanto como dispositivo de triagem, visando selecionar aqueles indivíduos que estarão realmente aptos a executar as tarefas, como para introjetar a cultura da violência, embrutecendo o corpo e o espírito daquelas pessoas.

A rigidez deste processo, que no jargão eles chamam de “rusticidade”, serve para produzir transformações profundas na pessoa que se submete a ele. Depois de superar todas as provações do adestramento, o sujeito vive uma espécie de renascimento social, ele adquire uma nova identidade.

Este renascimento diz respeito justamente ao estatuto de militar, através do qual a pessoa passa a se diferenciar substancialmente dos civis. Há todo um ritual envolvido nessa transformação pois trata-se de um processo físico e ao mesmo tempo simbólico.

É uma separação efetiva que se processa nos mais diversos níveis da existência da pessoa, que se vê então essencialmente diferenciada e apartada de sua origem civil, popular.

Finalizado o treinamento, esta cisão continua a se aprimorar dentro do próprio regime disciplinar do trabalho policial, que é análogo ao adestramento (hierarquização inquestionável, punições, humilhações, abusos, maus tratos etc).

Mas com um adicional: os policiais são proibidos de se organizar coletivamente em entidades de classe, eles não podem por exemplo fazer greve para lutar por seus direitos.

Estas proibições têm um efeito determinante para a identidade do militar e sua separação da população civil: elas o impedem de se reconhecerem como trabalhadores capazes de travar uma luta legítima por direitos.

A desumanização das vítimas de fato começa com a desumanização dos algozes, é um ciclo que precisa ser interrompido.

Consequentemente, eles tampouco podem se identificar com a classe trabalhadora em suas lutas. Esta impossibilidade de reconhecimento, que se funda sobre a separação do policial da população de que ele se origina, é fundamental para que ele possa administrar a violência sobre camadas sociais com as quais ele perdeu sua identificação.

Um exemplo disso é a máxima, tão propagada nos quartéis, de que policial não tem cor: a sua cor é a farda. A identidade militar busca assim romper os vínculos e elos de identificação do sujeito com sua origem.  

Como você vê um PM, agora? Seria um agente público heterogêneo ou essa possibilidade não existe no que compete à formação desses homens e poucas mulheres?

Acho que o horizonte da desmilitarização da polícia é uma pauta essencial para a implementação da justiça social no Brasil. Mas ela esbarra em muitos obstáculos, a começar, obviamente, pela própria polícia. Embora a atual conjuntura pareça desfavorável, há muita gente que acredita e luta por esta causa.

Pessoas de dentro da polícia e de fora dela. Na minha opinião, é impossível levantar esta bandeira sem pensarmos em envolver os próprios policiais. A questão é como encontrar os meios para isso. Eu acredito que a própria insatisfação dos policiais com seu trabalho oferece uma brecha para criar canais de interlocução.

Isso porque os índices de descontentamento, de adoecimento psíquico e até de suicídio são alarmantes entre os policiais – mas eles não podem falar sobre isso, não podem se organizar coletivamente, não podem reivindicar direitos.

Ora, enquanto eles próprios não poderem se reconhecer na condição de sujeitos de direitos, tampouco serão capazes de reconhecer os direitos da classe trabalhadora, da população não-branca, das pessoas sexualmente dissidentes e de outros grupos que atuam na contra-hegemonia.

E desta forma, vão continuar prevalecendo na caserna aquelas máximas hediondas como a de “direitos humanos para humanos direitos”. É assim que eles efetivamente enxergam as coisas e para mudar isso, para transformar a lógica das polícias que justifica abusos, violência e extermínio das categorias sociais julgadas inimigas, acho que precisamos reverter a engenharia do aparato que atua na desumanização dos policiais.

Porque ela está na origem da construção que os torna aptos a se tornarem perpetradores da violência do estado. A desumanização das vítimas de fato começa com a desumanização dos algozes, é um ciclo contínuo que precisa ser interrompido.

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