Aviões na pista principal do Aeroporto de Congonhas . Foto: Eduardo Knapp/Folhapress.

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‘Inspeção o mais rápido possível’: trabalhadores da aviação explicam como más condições afetam a segurança dos voos

Desde 2023, Sindicato Nacional dos Aeronautas recebeu 136 relatos que comprometem segurança; falta de qualificação, jornadas exaustivas e baixos salários são comuns.

Aviões na pista principal do Aeroporto de Congonhas . Foto: Eduardo Knapp/Folhapress.

Dor de cabeça, sensação incontrolável de sono, esquecimento e irritação. Esses foram alguns dos sintomas relatados ao sindicato da categoria por pilotos, copilotos e comissários de voo. Eles estão fatigados. A situação é a mesma para os mecânicos de aeronaves e agentes de aeroportos, segundo o sindicato dos aeroviários. 

Em uma audiência pública da Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, em junho deste ano, um piloto da Voepass, empresa envolvida em um acidente aéreo que matou 62 pessoas, relatou cansaço, viagens de até duas horas e meia até o local de trabalho e ligações da empresa durante sua folga. Desde 2023, a empresa foi alvo de uma denúncia feita ao Sindicato Nacional dos Aeronautas, relacionada à segurança de voo.

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Mas esse é um problema de toda a indústria. Conversei sobre as condições de trabalho dos profissionais da aviação com sindicalistas que representam as diversas categorias do setor, com um advogado trabalhista que atua há 30 anos na área e com um mecânico de avião que tem quase 40 anos de experiência. 

Todos foram unânimes: a jornada excessiva e a precarização do trabalho na aviação afeta diretamente a segurança das viagens aéreas.

Desde janeiro de 2023, o sindicato dos aeronautas recebeu 136 relatos de problemas que aconteceram durante a operação e que poderiam afetar a segurança do voo, como fadiga e más condições de trabalho.

A Latam foi a empresa mais reportada por pilotos, copilotos e comissários de voo, com 51 denúncias. Em seguida está a Gol, com 48, e a Azul, com 19. As outras empresas aéreas somam 18 denúncias.

A Anac garantiu que atua para “assegurar os níveis adequados de segurança e de qualidade na prestação dos serviços aos passageiros”.  Para isso, disse a agência, realiza atividades periódicas de vigilância em relação a todas as empresas de transporte aéreo e incorpora a esse processo as denúncias recebidas pelo órgão. Sobre as más condições de trabalho dos funcionários, a agência disse que não possui ingerência legal para atuar.

Esquema de otimização de escalas leva tripulantes à fadiga

Monitorar o nível de exaustão dos tripulantes é tão relevante que existe até uma norma da Anac, com requisitos para o gerenciamento de risco da fadiga desses trabalhadores – o Regulamento Brasileiro da Aviação Civil, a RBAC 117

Esse documento considera que a fadiga é o estado fisiológico de redução da capacidade de desempenho físico ou mental, que pode prejudicar o nível de alerta e a habilidade de uma pessoa executar atividades relacionadas à segurança operacional dos voos. 

Os principais fatores para isso são sono acumulado, vigília estendida, excesso de carga de trabalho e os ciclos circadianos, ou seja, o ritmo com que a pessoa realizou suas funções ao longo do dia.

Desde janeiro de 2023, o Sindicato Nacional dos Aeronautas recebeu 83 reportes de fadiga de pilotos, copilotos e comissários de voo. As informações enviadas por meio de um formulário, disponível no site da entidade, são importantes para identificar as condições físicas, cognitivas e emocionais de quem trabalha nos ares.

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Os tripulantes citaram dor de cabeça, sensação incontrolável de sono e bocejos como sintomas físicos mais recorrentes. Já os sintomas cognitivos foram esquecimento e atenção prejudicada. Irritação e mau humor foram descritos como os principais sintomas emocionais.

Segundo o presidente do sindicato dos aeronautas, Henrique Hacklaender, a lei permite que o tripulante trabalhe 12 horas seguidas, descanse pelo mesmo período e retorne para mais 12 horas de operação. Isso pode perdurar por até cinco dias consecutivos, dependendo da escala que o trabalhador receber.

“As empresas aéreas utilizam programas de otimização de escala que levam à fadiga. Com isso, o tripulante pode cometer erros durante uma operação e, por consequência, diminuir os patamares de segurança de voo”, disse o sindicalista.

Ele avalia que tudo se agravou depois de 2020, com a redução no número de voos devido à pandemia do coronavírus e a demissão de vários tripulantes. Só a Latam demitiu cerca de 2.700 profissionais naquele ano.

Hoje, a quantidade de voos já é maior do que antes da pandemia mas, segundo Hacklaender, novas admissões não foram feitas em quantidade suficiente. “Com isso, diversos profissionais vêm trabalhando no seu limite. A fadiga é, com certeza, o maior problema enfrentado pelos tripulantes na aviação brasileira atualmente”, afirmou.

Esse é o motivo pelo qual o sindicato dos aeronautas tem pressionado o poder público para revisar a RBAC 117. “Entendemos que a Anac precisa observar mais a experiência operacional dos tripulantes para prever as mitigações necessárias no sentido de reduzir os níveis de fadiga”, disse Hacklaender. 

Sindicato move mais de 800 ações trabalhistas contra as companhias aéreas e empresas terceirizadas.

Entre as reivindicações estão o aumento do tempo de repouso e a diminuição dos tempos perdidos pelos tripulantes dentro dos aeroportos.

Segundo o presidente do sindicato dos aeronautas, os problemas de fadiga e de violação de direitos trabalhistas que afetam a segurança dos voos acontecem de modo generalizado na aviação brasileira, principalmente nas grandes companhias aéreas que fazem transporte doméstico e internacional. “Temos ações coletivas contra todas as empresas”, disse Hacklaender. 

A Anac informou que está discutindo alterações nas regras sobre gerenciamento de fadiga entre profissionais da aviação comercial. Uma audiência pública foi realizada no dia 28 de junho e a consulta pública terminou no dia 12 de agosto.

“O objetivo é ouvir aeronautas, empresas, organizações e especialistas para aprimorar a norma que regula o tema, aperfeiçoar as possibilidades de negociação entre profissionais e empresas e promover melhores condições para o fomento de jornadas mais produtivas”, disse a agência, em nota.

Em nota, a Voepass destacou que “cumpre e respeita a legislação vigente” e segue todos os protocolos “que atestam a conformidade dos procedimentos e equipamentos”. A Latam disse que “as escalas dos tripulantes são elaboradas por meio de programas focados no gerenciamento da fadiga” (leia aqui a resposta da empresa). Já a Gol informou que “mantém seus canais abertos para todos os colaboradores e seus representantes para fornecerem relatos que ajudem a aprimorar nossos protocolos de Segurança”. A Azul não se pronunciou.

Em solo, funcionários alegam pressão para não atrasar voos

As más condições de trabalho dos funcionários da aviação que atuam nos aeroportos se assemelha à dos tripulantes de voo, no que se refere à sensação de fadiga e à jornada excessiva, mas é ainda pior devido aos salários mais baixos. Dependendo da função, essas pessoas ganham pouco mais de um salário mínimo.  

O Sindicato Nacional dos Aeroviários, que representa os trabalhadores de solo, como mecânicos, agentes de aeroporto e funcionários que carregam e descarregam as aeronaves, move mais de 800 ações trabalhistas contra as companhias aéreas e empresas terceirizadas, como Swissport e Dnata, que prestam serviço dentro dos aeroportos. 

Os motivos dos processos são principalmente excesso de horas extras, não pagamento do adicional de periculosidade e do adicional noturno, desvio de função, descumprimento da Convenção Coletiva de Trabalho e da hora reduzida no trabalho noturno.

O advogado Álvaro Quintão, responsável pelas ações trabalhistas do sindicato há quase 30 anos, percebe que houve uma mudança no perfil dos processos. “Até 15 anos atrás, as principais demandas eram por não pagamento de hora extra, de férias ou atraso nos salários. Agora, as ações estão mais relacionadas a desvio de função e excesso de jornada”, afirmou.

‘Às vezes, uma mesma pessoa tem que atender duas ou três aeronaves ao mesmo tempo.

Isso acontece, segundo Quintão, porque as empresas reduziram muito o número de trabalhadores e aumentaram a quantidade de voos. “Funcionários que trabalhavam seis horas antes estão tendo que trabalhar oito, dez horas por dia”, disse o advogado.

Segundo o presidente do sindicato, Luiz Rocha Cardoso, além da jornada excessiva, os trabalhadores são pressionados por agilidade, para garantir que os voos saiam no horário. “Às vezes, uma mesma pessoa tem que atender duas ou três aeronaves ao mesmo tempo. Isso tira o foco do profissional e afeta diretamente a segurança do voo”, afirmou.

Ao menos 10 aeroportos de vários estados foram fiscalizados em 2024 pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego. Em março, por exemplo, a operação Plano de Voo investigou, entre outras coisas, denúncias relacionadas a jornadas e escalas de serviço nos três terminais do Rio de Janeiro.

A fiscalização verificou que as equipes de carregamento de bagagens no aeroporto de Santos Dumont são reduzidas e os trabalhadores são submetidos à realização de múltiplas tarefas.

As denúncias, que se repetem em outros estados, foram feitas por trabalhadores de companhias aéreas, empresas terceirizadas e pelo sindicato de aeronautas e aeroviários.

Mecânico de aeronave tem que dar um jeitinho

Poucas profissões exigem 100% de acerto. Na maioria delas, é possível cometer alguns erros sem grandes problemas e corrigi-los no percurso. Não é o caso dos mecânicos de aeronaves. 

A vida de centenas de pessoas depende da excelência do trabalho desse profissional que, por sua vez, depende das condições oferecidas pelas empresas aéreas. É aí onde está o problema, segundo me disse o mecânico Maciel Fogo.

“As empresas não entregam o que a gente precisa. Falta ferramenta, tempo e o local adequado para realizar o trabalho. Na maioria das vezes, temos que dar um jeitinho, se virar nos trinta. Eu falo assim, porque já estou há quase 40 anos vendo isso. Eu posso garantir: as condições que as empresas nos dão estão muito aquém”. 

‘As empresas não entregam o que a gente precisa. Falta ferramenta, tempo e o local adequado para realizar o trabalho’..

Fogo explicou que o mecânico precisa ter, no mínimo, 20 minutos para fazer a avaliação primária de uma aeronave que acaba de pousar. O trabalho consiste em verificar a parte externa do avião, ver se não aconteceu algum imprevisto, como desprendimento de uma superfície ou a queda de um parafuso, por exemplo.

O ideal seria fazer isso depois do desembarque dos passageiros, e antes do novo embarque, mas a empresa não dá esse tempo, segundo Fogo. “Temos que atuar simultaneamente ao desembarque e ao embarque. É muito comum eu trombar com os passageiros na escada. A gente tem que dar conta da inspeção o mais rápido possível”, disse.

A exceção é apenas quando o avião precisa de uma manutenção mais demorada, como troca de pneu ou problema no motor. Nesse caso, a aeronave fica retida. “Mas, se for a rotina para liberação, nós realmente trabalhamos debaixo de uma pressão constante”, afirmou o mecânico.

Empresas nacionais estão perdendo mecânicos experientes

O piso salarial de um mecânico de aeronave no Brasil é de cerca de R$ 2.500, quantia que vai melhorando com o passar dos anos, mas ainda está longe de chegar ao valor que esse profissional ganha se trabalhar para uma empresa estrangeira. 

Segundo Fogo, que também é diretor do sindicato dos aeroviários, o mecânico que ganha R$ 3 mil em uma companhia aérea nacional pode receber até R$ 11.000 em empresas como a American Airlines.

Além do salário, as empresas brasileiras estão perdendo os melhores e mais experientes mecânicos devido às más condições de trabalho que oferecem. “Há muita cobrança, um volume exacerbado de trabalho, um reconhecimento pífio e um mérito financeiro quase inexistente”, disse Fogo.

A migração dos mecânicos também é um problema que pode afetar a segurança dos voos, segundo o sindicalista. “Menos de quatro anos de experiência é muito pouco para liberar uma aeronave com 300 passageiros, trocar um motor ou uma roda. As empresas nacionais correm o risco de ficar apenas com esse quadro de profissionais”, alertou.

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