Andrew Fishman

A máquina da morte da extrema direita está literalmente botando fogo em nosso país, enquanto muitos fingem que não.

Ela tem trilhões de reais para gastar em propaganda, e a grande mídia está muito feliz em aceitá-los.

Mas no Intercept praticamente cada centavo vem de você, nosso leitor. E, em 2025, precisamos nos unir e lutar mais do que nunca.

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O perigoso cinismo da Kamala Harris

Os apoiadores de Kamala Harris plantam as sementes de sua própria destruição.


“Os Estados Unidos não têm um Centrão, têm Democratas e Republicanos”, comentou um jornalista no programa Segunda Chamada, do canal MyNews, na quarta-feira. Eu era um convidado do programa naquele dia e ofereci uma outra visão: na verdade, sim, os EUA têm um Centrão – são os dois partidos juntos. O que falta aos eleitores é a capacidade de votar em qualquer alternativa real – em alguém que realmente represente uma visão humanista e os interesses do povo –, o que levanta a questão: os EUA são realmente uma democracia?

Se duvida de mim, basta olhar os registros públicos de contribuições de campanha e verá como todas as grandes corporações e seus donos doam bilhões para ambos os partidos todos os anos. Eles não perdem nunca.

Observe também como, independentemente de quem vencer, os maiores problemas não mudam substancialmente, como o militarismo desfreado representado nas mais de 750 bases militares estrangeiras em 80 países; o estado de bem-estar corporativo (também conhecido como a mamata trilionária); e a transferência de riqueza constante dos pobres para os ricos desde a década 80, levando a desigualdade a níveis recordes. Fun fact: 806 bilionários, somados, agora têm mais riqueza do que a metade mais pobre do país. 

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Ou, olhe como as posições políticas apoiadas pela esmagadora maioria dos eleitores democratas e republicanos, que vão contra os interesses corporativos, são sistematicamente ignoradas, como os pedidos de assistência médica universal, o fim das guerras da máquina global de assassinatos que eles chamam de “Departamento de Defesa” e o aumento do salário mínimo federal (o Congresso votou aumentos apenas duas vezes nos últimos 28 anos, sendo a última vez em 2008 – sim, você leu isso corretamente: há mais de uma década). 

Com esse conhecimento em mente, talvez você me perdoe por revirar os olhos para uma boa parte da mídia brasileira que está totalmente a bordo do trem de Kamala. Por que esse entusiasmo todo? Bem, principalmente porque ela não é o Trump. Ou o Biden. Além disso, muito está sendo dito sobre o fato de ela ser jovem, “divertida”, biracial e mulher. E já mencionei que ela não é o Trump? 

Ao meu ver, estão apaixonados pela estética, mas muito pouco pode ser dito sobre suas convicções políticas, plataforma ou legado. A carreira de Kamala tem sido definida, em grande parte, por uma certa “adaptabilidade” e “fluidez” quando se trata dos assuntos difíceis que poderiam prejudicar os interesses dos doadores ricos.

Kamala, assim como Biden, tem sido notoriamente afastada da mídia – um fato que se tornou cada vez mais perceptível desde que Biden desistiu da corrida presidencial e endossou sua vice-presidente, há um mês. Desde então, ela não deu uma única entrevista à imprensa, mas mesmo assim recebeu uma cobertura bajuladora da mídia por… bem, suas “vibes” e… por não ser Trump. Ou Biden. Padrões tão elevados! 

Mas as circunstâncias têm forçado Kamala a esclarecer sua posição em relação a uma questão que preferiria evitar e que pode ter o poder de decidir essa eleição apertada: o genocídio em Gaza. E, como uma típica democrata, ela decidiu trair sua base e a esmagadora opinião pública (especialmente dos eleitores mais jovens) em favor de doadores poderosos. 

No início deste mês, no importantíssimo estado de Michigan, a candidata foi recebida por manifestantes gritando, “Kamala, Kamala, você não pode se esconder! Não votaremos a favor do genocídio” (rima em inglês). Sua resposta? “Sabe de uma coisa? Se você quer que Donald Trump ganhe, então diga isso. Caso contrário, estou falando.” Tradução: dane-se! Eu sou a única opção que você tem. 

Atualmente, as estimativas de mortes em Gaza estão entre 40 e 186 mil, em sua grande maioria civis, principalmente mulheres e crianças.

Lembre-se ainda que, devido ao sistema eleitoral complexo e propositalmente antidemocrático, apenas eleitores de seis dos 50 estados efetivamente detêm o poder de decidir a eleição nacional. Em 2020, Biden venceu Trump em Michigan por pouco, enquanto em 2016 Trump venceu Hillary Clinton por apenas 10.704 votos. A população muçulmana no estado é de mais de 241 mil. Acrescente a isso os jovens progressistas e os judeus antigenocídio do estado, que são profundamente motivados pelo fim do apoio dos EUA ao massacre dos palestinos – quantos podem optar por não votar este ano? Quantos deles os democratas podem se dar ao luxo de perder?

Na Convenção Nacional Democrata em Chicago nesta semana, em um comício de quatro dias transmitido ao vivo para enaltecer sua candidatura, Kamala novamente se inclinou para a posição antipalestina e provocou indignação ao conceder um espaço de fala aos pais de um refém israelense-americano em Gaza, enquanto se recusou a permitir que qualquer palestino falasse, inclusive representantes estaduais palestinos de Michigan e Geórgia, outro estado chave. 

Enquanto isso, no palco, seus apoiadores mentiram descaradamente sobre o legado de Kamala e Biden. Antes considerada uma luz progressista, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez decepcionou muitos de seus antigos admiradores ao afirmar que Kamala “está trabalhando incansavelmente para garantir um cessar-fogo em Gaza”. No entanto, isso simplesmente não é verdade.

Já se passaram quase 11 meses desde o início do genocídio e Israel está iniciando uma campanha de bombardeio na última cidade ainda de pé em Gaza, Deir al-Balah, onde se encontram 1 milhão de refugiados.

Cada ponto vermelho neste mapa de Gaza é uma bomba israelense. Israel, armado e financiado pelos EUA, lançou mais bombas em Gaza nos últimos 10,5 meses do que as lançadas na Segunda Guerra Mundial nos infames bombardeios em Londres, Dresden e Hamburgo juntos ou quase o dobro da força de Hiroshima e Nagasaki juntas.

Poucos dias antes, o governo Biden-Harris anunciou o envio de mais US$ 3,5 bilhões em ajuda militar a Israel, parte de um pacote de US$ 14 bilhões – quase R$ 78 bilhões. Isso aconteceu menos de duas semanas depois que Israel assassinou o principal negociador do Hamas, Ismail Haniyeh, garantindo que o cessar-fogo continue distante. Pergunte a si mesmo: um intermediário honesto de um acordo daria bilhões de dólares aos militares que acabaram de assassinar sua contraparte em um assassinato seletivo? O que os EUA diriam se Putin, da Rússia, matasse o presidente ucraniano Volodymyr Zelinsky enquanto afirmava estar negociando um acordo de paz?

Além disso, o que Biden e Harris chamam de “cessar-fogo” é, na verdade, uma exigência de rendição incondicional do Hamas. O Hamas concordou várias vezes em libertar todos os reféns em troca de um cessar-fogo imediato e permanente – acordos razoáveis que foram prontamente rejeitados por Israel, que logo em seguida buscava alterar os termos do acordo com o apoio dos EUA. Esse é o legado de Biden, do qual Kamala se recusa a se distanciar.

Por que isso é importante? Bem, trata-se de um genocídio. Isso deveria ser suficiente. 

Mas também tem o potencial de virar o resultado da eleição. E, o que é ainda mais importante no longo prazo, essa hipocrisia flagrante enfraquece completamente a reivindicação dos democratas de qualquer tipo de superioridade moral. 

Eles dizem que os norteamericanos não devem votar em Trump porque ele é racista, mentiroso, indigno de confiança, um aliado de tiranos sanguinários, como Putin, que invade outros países, e porque ele prejudica os valores e as normas democráticas. 

Como os políticos que estão financiando ativamente a invasão de Gaza por um governo de extrema direita, radical, racista, fascista e supremacista podem alegar ser a opção moralmente aceitável? Não tem como. Eles estão violando ativamente muitas das próprias leis dos EUA, que proíbem transferências de armas que possam ser usadas em genocídio, crimes contra a humanidade e graves violações da Convenção de Genebra – enquanto fingem inocência. 

O slogan oficial da campanha de Kamala é “When we fight, we win” (Quando lutamos, vencemos). Pelo que estão lutando? E em nome de quem? Talvez a opção mais honesta – “Make America 5% menos maligna again!” – não foi suficientemente inspiradora.

Essa covardia encharcada de sangue pode ser suficiente para vencer a eleição deste ano, mas ao ignorar a profunda podridão de nossa política – e isso também se aplica ao Brasil –, os apoiadores cínicos de Kamala estão apenas alimentando o descontentamento, a descrença e a insegurança dos quais os trumpistas e bolsonaristas dependem. Se continuarmos nesse caminho, você pode ter certeza de que haverá uma próxima vez para a extrema direita e ela será muito, muito pior do que a última.

JÁ ESTÁ ACONTECENDO

Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.

A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.

Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.

A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.

Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.

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