O médico patologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Paulo Saldiva, não tem dúvidas: a exposição à fumaça tóxica que vem das queimadas e que encobre quase todo o país nas últimas semanas vai aumentar o número de mortes por problemas respiratórios.
“Os mais frágeis morrerão antes do tempo”, cravou, em entrevista ao Intercept Brasil.
Membro de dois comitês da Organização Mundial de Saúde, um que estabeleceu os padrões de qualidade do ar e outro que definiu o potencial da poluição atmosférica de causar câncer, ele sabe do que está falando. Há pelo menos 20 anos, estuda os efeitos das queimadas para a saúde humana.
Em 2023, um estudo do qual o médico foi co-autor calculou em mais de 81 bilhões de dólares as perdas econômicas associadas aos incêndios florestais entre 2000 e 2016. Isso representa mais de 5 bilhões de dólares por ano.
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As perdas estão relacionadas às mortes causadas pelo PM2,5, um material formado por partículas muito pequenas que estão presentes no ar poluído.
Saldiva disse que todos nos tornamos fumantes involuntários, mas com o agravante de que estamos fumando um cigarro que não se apaga por vários dias. “Essa fumaça nos envolve, às vezes, por semanas. Ela continua entrando em nossas casas, em nossas ruas e em nossos pulmões”, disse.
As consequências disso são o aumento nos casos de influenza, gripe e pneumonia. Pessoas que já têm doenças pulmonares, como asma, vão passar por dificuldades maiores.
Bebês de até dois anos de idade e idosos também estão entre os grupos mais vulneráveis, assim como os mais pobres, que ficam mais tempo expostos ao ar poluído, devido aos longos deslocamentos em transportes públicos.
Saldiva ainda chama atenção para as populações do Norte e de parte do Centro-Oeste, que estão expostas há mais tempo à fumaça tóxica que só recentemente chegou ao Sudeste, e é provocada pelas atividades do agronegócio. “A poluição, ali, é muito mais intensa e contínua”.
Confira a entrevista.
Intercept – Você está o tempo todo dizendo que a crise climática não afeta apenas o planeta, mas nos adoece também. Diante do que vivemos agora, inalando fumaça, já deu para entender que é nossa saúde que está em jogo?
Paulo Saldiva – Eu acho que sim. [Entendemos] esse conceito de que nós fazemos parte do mesmo ecossistema. Ao longo da criação do nosso conceito ecológico, os homens se colocavam como observadores do planeta. Nossa população era pequena. Agora, somos em maior número e começamos a perceber que as alterações do planeta afetam a nossa saúde. O sistema que observávamos de fora, que envolve todo o ecossistema planetário, agora nos inclui. Não somos mais observadores externos.
Estamos vivendo chuvas torrenciais, ondas de calor e esses incêndios florestais e de plantações. Não se trata de algo distante, não é só um aspecto preservacionista. Você pensa: isso já está afetando meu tempo de vida agora, minha saúde e a das pessoas que eu gosto.
O que significa, para a saúde humana, ter contato com essa fumaça que cobre quase todo o país? É como se todos nós tivéssemos nos tornado fumantes involuntários?
Essa comparação é muito apropriada, porque, se você for analisar, o cigarro é basicamente folha queimada, folha de tabaco. [Essa fumaça tem] uma posição muito parecida com a do cigarro, mas com uma diferença: o cigarro, você acende e apaga. Há um intervalo em que você não está fumando. Com essa fumaça na atmosfera, não.
Nós estamos fumando a mesma coisa: vegetal queimado, mas em uma concentração menor que a de um fumante. No entanto, o tempo que ficamos expostos é maior. A dose acumulada ao longo do dia pode ser significativa.
Essa fumaça nos envolve o dia inteiro, às vezes, por semanas. A fumaça continua entrando em nossas casas, em nossas ruas e em nossos pulmões.
Quais são as substâncias tóxicas presentes nessa fumaça?
Há centenas de compostos. Podemos dividi-los em duas frações: a que fica em partículas, chamada material particulado, e a fração gasosa. As partículas contêm carbono e metais tóxicos. Algumas podem conter elementos do solo, como o manganês, que, em grandes quantidades, também pode causar danos.
Há também compostos derivados da queima incompleta de proteínas e lipídios presentes nas folhas, que são cancerígenos. Substâncias voláteis, como benzeno, também estão presentes. E ainda tem os pesticidas, que podem vir da vegetação plantada.
Nenhuma dessas substâncias é inofensiva. Essa mistura é tóxica.
Quais partes do nosso corpo são afetadas?
Principalmente os olhos, o nariz, a garganta e o pulmão. Há um enfraquecimento e uma maior propensão a doenças respiratórias.
O coração terá que bombear mais sangue, para dar conta de um pulmão mais inflamado, o que gera sobrecarga. Se a pessoa tiver insuficiência cardíaca, a situação pode piorar.
‘Os mais pobres, que mantêm a cidade funcionando, sofrem mais’.
O sangue, por ficar mais concentrado devido à desidratação, pode formar tromboses com mais facilidade. Quando isso ocorre, leva ao aumento de doenças secundárias, como infartos do miocárdio, infartos cerebrais e infartos mesentéricos
Todos nós podemos apresentar sintomas, como os olhos ardendo, nariz entupido e tosse — parecidos com os de um fumante.
Quais são os grupos de pessoas mais vulneráveis aos problemas de saúde provocados pela crise climática?
Com essa fumaça, haverá maior chance de aumento nos casos de influenza, gripe e pneumonia. Pessoas que já têm doenças pulmonares, como asma, vão passar por dificuldades maiores.
Crianças, que têm uma defesa contra infecções mais baixa, vão enfrentar mais infecções respiratórias virais, principalmente no primeiro e segundo ano de vida.
Idosos, cujas defesas já estão fragilizadas, também serão mais afetados, com um grande aumento nas doenças infecciosas pulmonares.
São os mesmos grupos vulneráveis na pandemia da Covid-19.
É a mesma coisa. E tem outra semelhança: os mais pobres, que mantêm a cidade funcionando, sofrem mais. Quanto mais longe você mora do seu trabalho, mais tempo você fica exposto ao pior cenário, que são as ruas com poluição veicular e queimadas.
Na covid, não morreram apenas os idosos que ficavam em casa ou aqueles com doenças pré-existentes, mas muitos trabalhadores que se contaminaram no comércio ou no transporte público. Aqueles que precisavam estar nos caixas de supermercado, na operação da frota de ônibus, por exemplo.
Um sistema de monitoramento por satélite mostrou que, entre 27 de agosto e 4 de setembro, a concentração de monóxido de carbono em partes da região Norte, especialmente em alguns municípios de Rondônia, do Acre e do Amazonas, atingiu mais de 50 ppm. E essa concentração se manteve por mais de 5 horas. Isso afeta a saúde humana?
O monóxido de carbono é tóxico. Ele pode se ligar ao oxigênio, favorecendo doenças cardíacas. Essa concentração [de 50 ppm] é um péssimo sinal. Mas tem uma vantagem: seu tempo de permanência no corpo é de 8 horas, e ele é eliminado naturalmente.
O problema é que o monóxido de carbono não está sozinho. Junto com ele vêm outros compostos que são subprodutos da queima de madeira e não são detectados pelo satélite.
Fala-se muito do Sudeste, mas os níveis de poluição na região Norte e em grande parte do Centro-oeste são muito piores. A poluição ali é muito mais intensa e contínua. Isso já acontecia há muito tempo, mas agora começou a ser notado em todo o Brasil.
No âmbito da saúde pública, haverá aumento considerável na busca por atendimento médico?
O que sabemos é que o efeito de uma queimada demora cerca de 14 dias para passar. Mesmo depois que o fogo para, o risco persiste esse tempo todo.
Prevemos um aumento de 10% a 15% na demanda hospitalar, devido a doenças respiratórias e cardiovasculares. Sabemos disso com base no que já estudamos nos últimos 20 anos sobre queimadas no Brasil e sua relação com admissões hospitalares.
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, comentou que o sistema já está sentindo esse aumento de demanda.
Eu participei de um estudo que mensurou as perdas econômicas associadas aos incêndios florestais. Os anos de trabalho perdidos por morte prematura terão um custo significativo, proporcional ao aumento das doenças.
Haverá mais mortes?
Sim. Veremos um aumento no número de mortes e internações. A maior parte de nós sentirá desconforto, mas alguns adoecerão e, infelizmente, os mais frágeis morrerão antes do tempo.
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