Manaus está caminhando para se tornar a primeira capital do Brasil a ter 100% de seu parlamento tomado por representantes de igrejas evangélicas. Hoje, mais da metade do legislativo já é ligada às igrejas – e a tendência, nestas eleições, é que o número aumente ainda mais.
Nas eleições de 2012, apenas três pastores se elegeram e formaram a bancada evangélica de Manaus, o que representava apenas 7% do total de vereadores. Atualmente, a mesma bancada já compõe 54% do legislativo municipal, contando com 22 vereadores de diferentes denominações.
Se a tendência de crescimento se mantiver, em 2028 ou no máximo 2030 toda a Câmara Municipal de Manaus será ocupada por parlamentares que se elegeram com a alcunha religiosa.
O Intercept Brasil e o Vocativo procuraram ligações dos vereadores à igrejas evangélicas de duas formas. A primeira foi em um levantamento feito junto ao Sistema de Apoio ao Processo Legislativo no site da Câmara Municipal de Manaus.
O sistema mostra que cerca de 17% dos vereadores possuem funções ativas em suas respectivas comunidades religiosas. 21% deles atuam como pastores, cantores e/ou missionários. Combinamos os dados a uma busca nas redes sociais dos políticos, que evidenciam as ligações com grupos e organizações pentecostais.
Há parlamentares ligados ao Ministério Internacional da Renovação, à Igreja Assembleia de Deus no Amazonas, à Igreja Universal do Reino de Deus e da Assembleia de Deus de Madureira, além de outras denominações. A bancada evangélica é quase toda masculina – a exceção é Yomara Lins, do Podemos, que é pastora da Comunidade Evangélica Internacional do Avivamento.
Frente Parlamentar em Defesa dos Valores Cristãos
Na eleição municipal passada, em 2020, o vereador mais votado da cidade, eleito com 13.880 votos, foi o pastor na Igreja Universal do Reino de Deus João Carlos, do Republicanos. Carlos é o presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família e dos Valores Cristãos da Câmara. O segundo colocado também: Joelson Silva, hoje sem partido, pastor da Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Amazonas.
Os efeitos da Câmara conservadora já são vistos em manifestações de ataque a direitos. Dois dos pastores mais atuantes dentro da bancada evangélica local têm mandato desde 2012: os pastores Marcel Alexandre (eleito inicialmente pelo PMDB, atualmente no PL), d0 Ministério Internacional da Renovação (MIR) e Roberto Sabino, do Republicanos, também da Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Amazonas.
Ambos possuem histórico de perseguição a grupos LGBTQIAP+ na capital. Em seu quarto mandato consecutivo, Marcel Alexandre, do PL, tem repetidamente manifestado opiniões contrárias aos direitos das pessoas transexuais.
Em março de 2023, durante uma sessão na Câmara, Alexandre propôs um projeto de lei para limitar a participação de pessoas trans em esportes femininos.
Outro vereador que se destaca negativamente com a pauta anti-LGBTQIAP+ é Raiff Matos, também do PL. Ele é recordista de propostas que atacam a dignidade desses grupos na casa, como por exemplo o projeto de lei que proíbe a linguagem neutra nas escolas de Manaus.
Matos também é autor do projeto de lei que instituiu o dia 10 de março como o Dia do Conservadorismo em Manaus.
Em março de 2023, Raiff Matos usou a tribuna para classificar a participação de mulheres trans em esportes femininos como “aberração”. Também usou suas redes sociais para se comprometer publicamente a usar seu mandato para barrar a participação de pessoas trans em campeonatos femininos.
Matos também é autor do Projeto de Lei nº 454/2023, que propõe assegurar aos pais e responsáveis o direito de vedar a utilização de materiais escolares em atividades pedagógicas de gênero que não tenham sido previamente aprovados por eles.
Para o cientista político Elias Tavares, pós-graduado em comunicação e marketing político, é justamente os direitos das minorias, população LGBTQIAP+ e na liberdade religiosa um dos riscos do domínio evangélico na Câmara Municipal.
A agenda política e as prioridades legislativas seriam moldadas em grande parte pelos valores e interesses desses grupos – o que, segundo ele, poderia afetar áreas como direitos civis, políticas sociais e culturais.
“Não é saudável para a democracia que um parlamento seja totalmente cooptado por uma única corrente política, seja de direita ou esquerda. A diversidade de pensamento é fundamental para a representação democrática”, afirma Tavares.
Outro efeito é relacionado à harmonia de poderes. Isso porque um parlamento homogêneo pode resultar em uma falta de equilíbrio e fiscalização efetiva do Executivo, especialmente se o governo também estiver alinhado ideologicamente.
Esse cenário já acontece em Manaus, onde a Câmara barrou nada menos do que 27 pedidos de apuração sobre fatos da gestão do prefeito – e também evangélico bolsonarista – David Almeida, do Avante.
“Isso pode levar a uma governança menos transparente e menos responsável. A predominância de uma única visão religiosa no legislativo também poderia influenciar a formulação de políticas públicas de uma maneira que possa não respeitar completamente a separação entre igreja e estado, comprometendo a laicidade do governo”, alerta Tavares.
Mais templos do que escolas e hospitais
O Brasil se destaca por sua alta religiosidade: 76% dos entrevistados afirmaram seguir alguma religião, posicionando o país entre os mais religiosos do mundo segundo a pesquisa Global Religion 2023.
O Amazonas é o estado mais religioso do Brasil. Segundo o Censo 2022, são 485 templos religiosos para cada 100 mil habitantes. Ao todo, são 19.134 templos religiosos, o que representa um templo para cada 68 domicílios.
Na capital Manaus, existem 7.865 igrejas e templos, mais do que o dobro da quantidade de escolas (1.743) hospitais e UBSs (1.056) somados.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada publicado em 2023 mostrou que entre os 124.529 estabelecimentos existentes no país em 2021, 52% são evangélicos pentecostais ou neopentecostais. Entre os evangélicos pentecostais, a Assembleia de Deus é a que possui o maior número de estabelecimentos, 14%.
Eles são seguidos por 19% evangélicos tradicionais e 11% católicos.
Por conta desse crescimento, é de se imaginar que o poder financeiro das igrejas influenciaria o jogo político pela via econômica. Mas, na avaliação de Gilson Gil, doutor em sociologia e professor do departamento de ciências sociais da Universidade Federal do Amazonas, a Ufam, o quadro é ainda mais complexo.
“Essas igrejas estão chegando ao poder por conta própria. Possuem redes de assistência social em bairros pobres e localidades abandonadas pelo poder público. Por isso, seu crescimento é vertiginoso e nas comunidades mais carentes”, explica Gil.
“O que impressiona, e difere do padrão católico de atuação política, é que os pastores cobram votos em troca dessa ajuda e se posicionam abertamente em termos partidários”, avalia o sociólogo.
Outro fator que explica essa ascensão, segundo Gil, é a fome de poder. “Os evangélicos mostram uma fome política que o catolicismo não possuía, mesmo nos tempos da ditadura, quando a igreja católica estava muito próxima dos movimentos de esquerda”, pondera.
“Os evangélicos possuem trabalhos sociais relevantes, mas cobram votos em troca e possuem projetos declarados de poder, que, a cada eleição, tornam-se mais claros. Atuam em conjunto e mostram-se capazes de impor suas pautas”, acredita Gilson.
O estudo “Frente Parlamentar Evangélica no Amazonas: A força da representatividade política, religiosa e midiática”, da Ufam, mostrou que esse movimento cresceu no Brasil justamente no momento da queda da ex-presidente Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016.
A pesquisa analisou matérias jornalísticas de 2015-2016 e constatou como esses parlamentares recorrem à mídia para promover suas ações.
Essa religiosidade exacerbada acabou sendo terreno fértil para o alinhamento ao bolsonarismo. O que ajuda a entender porque o ex-presidente venceu as eleições municipais na capital amazonense em 2022 com mais de 60% dos votos, mesmo depois da condução desastrosa da pandemia, incluindo o colapso de oxigênio em janeiro de 2021.
Não por acaso, entre todas as capitais do país naquele ano, o ex-presidente escolheu justamente Manaus para participar da Marcha Para Jesus.
Candidaturas progressistas lutam para sobreviver
Diante desse cenário, com o poder financeiro maior, tanto dos candidatos oriundos de igrejas quanto dos partidos que os abrigam, as candidaturas de esquerda ou progressistas passam por sérias dificuldades para se eleger.
“A democracia ainda precisa ser democratizada. Há um descompasso grande na divisão de recurso de fundo eleitoral. Grandes partidos têm acesso quase majoritariamente do recurso do fundo partidário e eleitoral que deveria servir para oportunizar candidaturas que estejam de fato em conexão com a realidade da sociedade”, reclama Vanda Witoto, que busca ser a primeira vereadora indígena de Manaus pela Rede Sustentabilidade.
Outra queixa comum dessas candidaturas alternativas é a forma de distribuição de recursos para as campanhas. “Se todos os partidos têm a mesma fonte de recurso, pessoa física e fundo eleitoral, por que que algumas candidaturas estão com uma estrutura muito maior, visivelmente? De onde veio esse dinheiro?”, questiona o ex-deputado federal e atual candidato a vereador Zé Ricardo, do PT.
Para Vanda Witoto, o problema nasce das regras estabelecidas pela Câmara dos Deputados em Brasília, que segundo ela, não mudam o sistema. “O problema está na disputa injusta. Na divisão dos recursos e do tempo de TV, no uso da máquina municipal e estadual por quem está no poder, nos milhões a serviço da compra de voto e contra as ideias, contra as propostas que poderiam melhorar a qualidade de vida dos mais vulneráveis”, lamenta Vanda.
Para o petista Zé Ricardo, a desigualdade do processo desestimula candidaturas progressistas. “Eu já vi professores dizendo que não seriam candidatos porque precisariam de muito dinheiro. Então realmente, se a eleição depender de dinheiro, muita gente fica fora. Essa desigualdade econômica não garante democracia, não é a vontade do povo”, afirma.
Para especialistas, falta fiscalização e conscientização
A legislação eleitoral proíbe a utilização de templos religiosos para fins eleitorais. A Justiça Eleitoral veda também o abuso de poder religioso, que pode levar à cassação de mandato de candidatos que se beneficiam dessa prática. Mas, segundo especialistas, isso não é suficiente.
“A legislação atual limita o uso de templos religiosos para fins políticos, mas a aplicação prática dessas leis é complexa e enfrenta desafios. Além disso, o discurso religioso pode ser usado de maneira sutil e indireta para influenciar eleitores, dificultando a detecção e a punição de infrações”, comenta Elias Tavares.
Para Elias, é necessário um esforço contínuo para melhorar a fiscalização e garantir que todos os candidatos respeitem a laicidade do Estado e as regras eleitorais. “Ferramentas mais robustas e específicas podem ser necessárias para abordar a crescente influência do fundamentalismo religioso na política, garantindo que a participação religiosa não comprometa os princípios democráticos e a imparcialidade do processo eleitoral”, sugere.
Para Fued Semen Neto, advogado e presidente da comissão de direito eleitoral da OAB do Amazonas, é preciso que os órgãos eleitorais ajudem a conscientizar a população. “Acredito que ainda seja preciso um reforço na conscientização dos eleitores quanto à essas condutas ilícitas, para evitar a manipulação religiosa com viés eleitoral”, sugere.
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