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Quando se trata de Israel, a imprensa esconde o cadĂĄver

Um ano depois, enquadramento da imprensa insiste no 7 de outubro como 'o começo de tudo'. 

Quando se trata de Israel, a imprensa esconde o cadĂĄver

Israel: estado genocida

Parte 7

Em um ano, Israel matou mais de 186 mil palestinos e aniquilou a infraestrutura de Gaza. Ao contrĂĄrio do que a mĂ­dia hegemĂŽnica afirma, nĂŁo se trata de uma "resposta ao ataque do Hamas" de 7 de outubro.


Israel matou ao menos 558 pessoas no Líbano no dia 23 de setembro. Entre elas, 50 crianças e 94 mulheres. Mais de 1.800 pessoas ficaram feridas e milhares de famílias fugiram de suas casas no sul do país. 

Dias depois, em 27 de setembro, cerca de 85 bombas “bunker buster”, que pesam de 900 a 1.800 kg cada, foram lançadas sobre o subĂșrbio de Dahieh, ao sul da capital, ĂĄrea residencial que Ă© uma das mais densamente povoadas do paĂ­s. Seis prĂ©dios residenciais foram demolidos no ataque, que matou Hassan Nasrallah, secretĂĄrio-geral do Hezbollah. 

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“Ataque a Hezbollah era necessĂĄrio para conter ameaça”, disse o editorial de O Globo em 29 de setembro, dois dias depois do bombardeio ao subĂșrbio sul de Beirute. “Ataque do IrĂŁ a Israel, que enfrenta o Hezbollah, abre caixa de Pandora; escalada de embates serĂĄ paga por todo o mundo”, disse a Folha de S.Paulo, tambĂ©m em editorial, em 2 de outubro. 

Um ano depois do ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro, as coberturas do genocĂ­dio na Palestina e da agressĂŁo ao LĂ­bano seguem insistindo que a atual onda de barbĂĄrie na regiĂŁo começou ali – e, se tudo começou em 7 de outubro de 2023, tudo o que Israel fizer depois disso Ă© “resposta”. 

Israel implementa agora, no LĂ­bano, os mesmos mĂ©todos aplicados aos olhos do mundo em Gaza hĂĄ um ano. Punição coletiva, confinamento de civis em evacuaçÔes forçadas e ataques a profissionais e serviços de saĂșde sĂŁo algumas das violaçÔes fartamente documentadas, que se repetem dia apĂłs dia. 

Escrevo do centro de Beirute, uma ĂĄrea ainda considerada “segura”, nĂŁo bombardeada atĂ© agora, mas sob o som constante dos drones israelenses que estĂŁo sobre nossas cabeças hĂĄ semanas. TambĂ©m hĂĄ o som ocasional – mas nem tanto – das ambulĂąncias que tentam socorrer vĂ­timas a cada novo bombardeio e das prĂłprias explosĂ”es, que ocorrem a poucos quilĂŽmetros e podem ser ouvidas daqui. 

JĂĄ sĂŁo mais de 1.400 pessoas mortas no LĂ­bano desde o dia 16 de setembro, quando a agressĂŁo israelense se intensificou. Entre os mortos nesse perĂ­odo, mais de 110 crianças, 120 mulheres e 100 paramĂ©dicos. A crise humanitĂĄria  tem ainda 1 milhĂŁo e 200 mil desalojados e mais de 400 mil pessoas que fugiram por terra pela SĂ­ria, segundo o governo libanĂȘs. Desde 8 de outubro de 2023, o nĂșmero de mortos ultrapassa os 2 mil. 

Cito os editoriais dos dois principais veículos impressos do país porque são ilustrativos de um padrão na cobertura ocidental, aquele que då o seu tom dominante. Hå, é claro, honrosas exceçÔes, mesmo nesses veículos, sobretudo na cobertura factual. 

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A olhos mais ingĂȘnuos, esse padrĂŁo poderia soar como uma espĂ©cie de dissonĂąncia cognitiva: a mesma mĂ­dia que, hĂĄ um ano, televisiona e estampa em matĂ©rias factuais (algumas das) cenas de um genocĂ­dio o faz  sob o guarda-chuva de uma linha editorial que assume a justificativa isralense de “auto-defesa” como ponto de partida inquestionĂĄvel.

“Ataque ao Hamas”, “ataque ao Hezbollah”: a fĂłrmula gasta, que briga com a realidade, mas segue dominando as manchetes – mesmo que cerca de 60% das 42 mil vĂ­timas fatais em Gaza sejam crianças e mulheres. Aos olhos de O Globo, o assassinato de 50 crianças em um Ășnico dia no LĂ­bano Ă© justificĂĄvel, apesar de “lamentĂĄvel”, pois Ă© efeito colateral de um “ataque necessĂĄrio” para combater o “mal maior”. 

A capa de O Globo de 7 de outubro nĂŁo deixa dĂșvidas: “Um ano depois, ataque do Hamas ainda deixa marcas”, diz a manchete. “Gatilho para a atual deflagração de conflitos no Oriente MĂ©dio, ataque terrorista que vitimou mais de mil pessoas completa hoje um ano e ainda traumatiza moradores do sul de Israel”, segue a chamada de capa. Um ano de genocĂ­dio de palestinos – que nĂŁo mereceram sequer uma palavra na capa do jornal. 

Um ano e 86% de Gaza destruĂ­da com explosĂ”es equivalentes a cinco bombas nucleares. De imagens de soldados israelenses quebrando pertences e vestindo lingeries de mulheres palestinas, um ano de crianças despedaçadas reduzidas a sacos plĂĄsticos em Gaza – para o Globo, parece que nada disso merece ser lembrado. Nem mesmo os 175 jornalistas ou os 880 profissionais de educação assassinados foram mencionados.

Como tambĂ©m nĂŁo merece ser lembrado nada ocorrido antes de 7 de outubro de 2023. Jornalistas gostam de – e sabem, por obrigação da profissĂŁo – fazer perguntas. Mas o jornal, aparentemente, nĂŁo quer perguntar por que, numa madrugada de sĂĄbado, a violĂȘncia e o sangue romperam (literalmente) as cercas de Gaza, e chegaram tambĂ©m pelos cĂ©us e o mar a Israel, assassinando militares e civis israelenses. 

A mídia ocidental se torna parte ativa da legitimação do genocídio em Gaza e da política expansionista do Estado de Israel.

Um ano depois, O Globo prefere insultar a inteligĂȘncia dos seus leitores e nos fazer acreditar que a regiĂŁo vivia em paz e calmaria, atĂ© que bĂĄrbaros selvagens resolveram dar o primeiro passo, do mais absoluto nada. 

É o mesmo O Globo que noticiou, como toda a mĂ­dia brasileira e mundial, a decisĂŁo do Tribunal de Haia de julho deste ano, que considera ilegal a “prolongada ocupação, colonização e anexação” dos territĂłrios palestinos na CisjordĂąnia e JerusalĂ©m Oriental  por Israel desde 1967. 

Mas uma coisa nĂŁo deve ter nada a ver com a outra. Falemos de Gaza, entĂŁo: ao procurar a reportagem deste ano sobre as crianças destroçadas recuperadas em sacos plĂĄsticos, o primeiro resultado da pesquisa foi esse, de 2014.  Na ocasiĂŁo, Salem Antez, um pai palestino em Gaza, carregava em um saco os restos mortais de seu filho, assassinado pela invasĂŁo isralense de uma dĂ©cada atrĂĄs. Deve ser apenas uma coincidĂȘncia mĂłrbida. 

Todos lembramos da CNN divulgando um calendĂĄrio em ĂĄrabe como uma “lista de terroristas do Hamas”, atuando como porta-voz do exĂ©rcito israelense para justificar um ataque a um hospital. Seja reproduzindo acriticamente a perspectiva israelense, seja naturalizando os 76 anos de limpeza Ă©tnica, apartheid, ocupaçÔes ilegais e violaçÔes sistemĂĄticas cometidas por Israel desde 1948, a mĂ­dia ocidental se torna parte ativa da legitimação do genocĂ­dio em Gaza e da polĂ­tica expansionista do estado de Israel. 

E repete o procedimento na cobertura sobre a agressĂŁo ao LĂ­bano. A histĂłria que se conta Ă© que tudo teria iniciado porque o Hezbollah começou a lançar foguetes em direção ao norte de Israel em 8 de outubro de 2023, “horas depois do monstruoso ataque terrorista do grupo palestino Hamas em 7 de outubro”. “Foi esse o motivo [o lançamento de foguetes pelo Hezbollah] para Israel atacar o LĂ­bano nas Ășltimas semanas, começando com a explosĂŁo sincronizada de perto de 3 milhares de pagers usados para comunicação entre integrantes do Hezbollah e culminando com a morte de seu lĂ­der, Hassan Nasrallah, atingido por um ataque em Beirute enquanto participava de uma reuniĂŁo no subsolo de um prĂ©dio residencial na sexta-feira”, diz o editorial de O Globo de 29 de setembro.

Quando Israel invadiu o LĂ­bano em 1978, nĂŁo existia Hezbollah. Quando o fez novamente em 1982, tambĂ©m nĂŁo – Ă© precisamente aĂ­ que surge o grupo paramilitar (hoje tambĂ©m um partido polĂ­tico), aliĂĄs. Mas o jornalismo parece poder se esquecer disso sempre que precisar. 

Em poucas linhas, O Globo concede, a Israel, a permissão para violar o princípio da distinção, ao transformar dispositivos civis em alvos militares e explodir pagers em apartamentos, bairros residenciais e supermercados, matando crianças e civis no caminho. “Explosão sincronizada” da “comunicação entre integrantes do Hezbollah”.

A lĂłgica sionista, introjetada por essa linha editorial, espera simplesmente que os palestinos, libaneses e quem mais estiver pelo caminho da expansĂŁo colonialista aceite viver sob submissĂŁo.

 Se essas linhas dizem muito, tambĂ©m sĂŁo reveladoras as ausĂȘncias: O Globo nĂŁo menciona, mas em 8 de outubro, o Hezbollah lançou foguetes contra posiçÔes israelenses nas fazendas em Shebaa e nas Colinas de GolĂŁ, ambos territĂłrios ocupados por Israel desde 1967. Desde entĂŁo, e atĂ© as Ășltimas semanas, o Hezbollah vinha restringindo seus ataques a alvos militares em Israel. 

“Atacar alvos do Hezbollah em solo libanĂȘs foi uma medida necessĂĄria diante dos riscos que corria”, diz o mesmo editorial, afinal, “o Hezbollah opera, a exemplo de seu congĂȘnere Hamas, infiltrado na população civil libanesa, usada como escudo humano para dissuadir ataques”. Sim, Ă© outubro de 2024, um ano depois do genocĂ­dio em Gaza, e o jornalismo segue falando em “escudos humanos” para justificar a carnificina. 

A pecha de “terrorista”, afinal, sĂł se aplica ao Hezbollah e ao Hamas: o criminoso de guerra Benjamin Netanyahu pode violar quantas leis internacionais quiser, ir Ă  ONU apresentar mapas de Israel que apagam toda a Palestina, ocupar ilegalmente territĂłrios, explodir hospitais e assassinar crianças – mas continuarĂĄ sendo tratado como “primeiro-ministro”, “chefe de Estado”. Terroristas sĂŁo sempre os outros. 

“Biden tem razĂŁo em dizer que, uma vez contida a ameaça iminente dos grupos extremistas, Ă© preferĂ­vel o cessar-fogo Ă  guerra que perdure”, continua o texto. HĂĄ 76 anos, sempre hĂĄ “mais uma”, “a Ășltima” barbĂĄrie autorizada em nome do combate ao terror, depois da qual a paz voltaria a reinar – nĂŁo importando as pilhas de corpos, de escombros e o banho de sangue deixado pra trĂĄs. 

NĂŁo importa tambĂ©m que, na “normalidade”, os palestinos retornem ao cotidiano de ocupação ilegal, apartheid, roubos de terras, envenenamento de cursos d’água, prisĂ”es arbitrĂĄrias, tortura, cerco a civis e sem qualquer perspectiva quanto Ă  “solução dos dois Estados” (negada pelo Likud de Netanyahu, defendida em abstrato cinicamente pelo Ocidente que o financia). 

A lógica sionista, introjetada por essa linha editorial, espera simplesmente que os palestinos, libaneses e quem mais estiver pelo caminho da expansão colonialista aceite viver sob submissão (ou mesmo ser varrido do mapa). Mas, surpresa: a carnificina não sustenta a “paz” prometida, apenas prepara a próxima, sempre maior que a anterior. 

Na Folha de S.Paulo de 24 de setembro, apĂłs o dia mais mortal da agressĂŁo isralense ao LĂ­bano, o mesmo padrĂŁo: “Em escalada no conflito no Oriente MĂ©dio, Israel realizou o maior ataque ao Hezbollah desde o inĂ­cio da guerra em Gaza”, diz a chamada de capa. Nenhuma menção Ă s 50 crianças mortas no ataque “ao Hezbollah”. HĂĄ crianças mais propĂ­cias a serem contabilizadas como “dano colateral” nessa cobertura – e elas sĂŁo sempre ĂĄrabes. 

Em seu editorial de 2 de outubro, a Folha se refere ao 7 de outubro de 2023 como “a caixa de Pandora aberta na regiĂŁo”, sem qualquer referĂȘncia ao que acontecia antes daquele dia. Enquanto o ato do Hamas Ă© “terrorista” e um “ assalto da horda bĂĄrbara”, o genocĂ­dio palestino Ă© classificado como “a violenta operação militar de Israel na Faixa de Gaza”.

Em um dos cada vez mais raros momentos de debates francos sobre o Oriente MĂ©dio na mĂ­dia brasileira, o Canal Livre da Band de 29 de setembro, Salem Nasser, professor de Direito Internacional da FGV, usou a imagem do “cadĂĄver esquecido” para rebater a ideia de que o Oriente MĂ©dio caminhava para “um mundo novo, sem conflitos” antes do 7 de outubro. 

Era uma referĂȘncia Ă  cĂ©lebre frase de Waldir Troncoso Peres – advogado criminalista conhecido por sua atuação na defesa de acusados de feminicĂ­dio –, que dizia que a função do advogado Ă© fazer o jurado esquecer que existe um cadĂĄver, contando uma histĂłria que tire de foco a vĂ­tima. 
Salem Nasser usou a imagem para denunciar como a alegada “estabilidade” prĂ©-7 de outubro tira de cena o apartheid, o genocĂ­dio e da limpeza Ă©tnica sistematicamente promovidos pelo sionismo no Oriente MĂ©dio, naturalizando dĂ©cadas de violĂȘncia.

A triste constação Ă© a de que nĂŁo sĂŁo advogados de defesa de Israel escondendo o cadĂĄver do genocĂ­dio colonial – mas o jornalismo.

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