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‘Do PT ao Centrão’ é uma transformação das bases sociais do Brasil

Entrevista do Intercept com líder comunitário que largou o PT para militar pelo Centrão escancara uma transformação mais profunda nas periferias que abandonaram a esquerda.


Sou um homem de meia idade, nascido, criado e morador do subúrbio carioca. Nasci nos últimos anos da ditadura. Lembro bem pouco dos tempos do ex-presidente da República José Sarney, lembro do nome, lembro do anúncio do “congelamento” dos preços; entendi aquilo de forma bem literal.

Imagine, como alguém poderia congelar um preço?

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Lembro-me mais do desespero dos meus pais com a inflação, da preocupação com a insegurança alimentar – uma realidade na minha infância.

Lembro então do Fernando Collor, de vê-lo na televisão, de uma discussão entre meu pai, que apoiava Lula, e um tio que havia votado no então presidente. Lembro que pouco tempo depois “conheci” os evangélicos.

De um ano para o outro, boa parte dos meus amigos da escola se converteu à religião, por conta de suas famílias. Lembro melhor da criação do Plano Real e a eleição de Fernando Henrique Cardoso. Lembro de uma certa sensação coletiva de melhora na população por conta do consumo de produtos importados. Melhor dizendo, contrabandeados do Paraguai. Mas quem se importava?

Foi nessa época, justamente, que perdi os meus primeiros amigos para o tráfico de drogas. Que buscavam, ali, o acesso aos tais importados do Paraguai. Tênis, roupas, toca-fitas, que exibiam nos bailes funk dos fins de semana.

A primeira festa no subúrbio, a vitória de Lula

O tempo passou.

Eu já era um jovem adulto quando o PT chegou ao poder. Lembro dos gritos do meu pai quando o resultado foi anunciado, parecia um gol do Fluminense, seu time. Escutava gritos semelhantes vindo da vizinhança.

O subúrbio estava em festa!

Enquanto isso, na televisão, alguns comentaristas políticos justificavam a vitória do petista dizendo, ainda que sutilmente, que os pobres não sabiam votar.

O subúrbio da minha infância fora substituído por uma simulação de classe média.

O subúrbio rapidamente se transformou. As típicas casas suburbanas, em sua maioria construídas nas décadas de 70 e 80, foram enfim reformadas, dando lugar a uma outra estética, muito inspirada pelos condomínios da Barra da Tijuca, que por sua vez se inspirava na cidade de Miami.

As calçadas, onde antigamente nos sentávamos à noite para escapar do calor, foram ocupadas por carros recém populares.

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As igrejas se multiplicaram quase na mesma proporção. Agora havia uma em cada esquina. Para muitos, as melhoras que viviam não eram resultados de políticas públicas, mas fruto de providência divina.

O subúrbio da minha infância não era mais o mesmo, fora substituído por uma simulação de classe média.

E isso é algo que digo sem saudosismo, mas tampouco comemoro. As coisas são o que são.

Não por coincidência, foi nessa época que as milícias se espalharam pela região. Distribuíam ilegalmente internet e TV a cabo, enquanto cobravam dos moradores por proteção. Dito de outra forma, prometiam entretenimento e segurança.

A segunda festa no subúrbio, a vitória de Bolsonaro

Jair Bolsonaro, em 2016, acionou uma lógica semelhante durante o lançamento não oficial de sua candidatura para a presidência em um evento no Bangu Atlético Clube, um dos times mais tradicionais do subúrbio carioca.

O “Capitão” dizia ser a última linha de defesa contra o comunismo e tudo aquilo que ele representava. E “tudo aquilo que ele representava” ia muito além da política, incluía o crime organizado, a violência urbana, mas também o “retorno” à pobreza do passado.

Aquilo foi suficiente para que fosse abraçado com força pelo subúrbio carioca, que rapidamente se tornou um dos seus principais redutos no estado do Rio de Janeiro. Talvez no Brasil, afinal, estamos falando de uma região onde vivem, por baixo, cerca de 3 milhões de pessoas, mais do que a diferença de votos que decidiram a eleição de 2022!

Em 2018, Bolsonaro foi eleito. Mais uma vez o subúrbio estava em festa. Comemoravam a vitória do “Capitão”! O mesmo subúrbio que, anos antes, vibrou com a vitória de Lula.

Mais uma vez ouvi que “pobres não sabem votar”. Mas, agora, de pessoas do meu próprio campo.

E talvez seja mais fácil repetir essa repisada hipótese sobre a ignorância do povo do que se perguntar: o que mudou em tão pouco tempo?

E essa é uma outra diferença crucial: a forma como essa população se informa e se comunica por meio dos celulares e redes sociais.

Uma pergunta cuja resposta é ao mesmo tempo simples e complexa.

A parte simples é a compreensão de que “tudo mudou”. A parte complexa é o entendimento do que isso significa.

A pobreza de outrora deu passagem a uma simulação de classe média. Isso implica que essa população, agora, deseja efetivamente outras coisas. Se antes, durante a minha infância, por exemplo, a questão era o risco de entrar para o mapa da fome no país, agora a questão passa pela manutenção de um certo poder de consumo.

As pessoas não desejam apenas ter comida, elas querem realmente comer picanha.

Não desaprenderam a votar, apenas votam com esse “novo” desejo em mente.

Um desejo que é corroborado tanto pelas inúmeras igrejas da região, onde ser “próspero” é sinônimo de ser abençoado por cristo, quanto pelos conteúdos que consomem nas redes sociais, que associam à felicidade, à própria ideia, a um determinado estilo de vida alinhado ao consumo.

E essa é uma outra diferença crucial: a forma como essa população se informa e se comunica por meio dos celulares e redes sociais.

E tudo isso é particularmente verdadeiro quando se trata dos mais jovens, aqueles que não viveram o passado da região.

Estou falando do subúrbio carioca, mas poderia estar falando de outras periferias urbanas no país, como mostra a entrevista do jornalista Paulo Motoryn com um ex-militante do PT paulistano, que hoje milita pelo centrão.

A fala do ex-militante de esquerda desvela processos muito semelhantes, mas ocorridos a milhares de quilômetros “daqui”. Ele fala sobre as estratégias de cooptação da direita, é verdade, mas também fala muito dessa transformação do desejo e do imaginário dos mais pobres.

Ele fala dele mesmo, afinal.

E aqui se desenha a polêmica dessa entrevista, pois a sua fala se distancia da imagem do “pobre metafórico” que até hoje alimenta boa parte do imaginário e a agenda política de certas esquerdas. Especialmente destas que perdem cada vez mais espaço nas eleições.

Desta esquerda que insiste na ideia de que (agora) os “pobres não sabem votar”.

Como disse, é mais fácil repetir a mesma ladainha de sempre do que admitir que não são capazes de olhar para essas pessoas, para o seu desejo, para o seu imaginário, de verdadeiramente ouvi-las e lhes oferecer uma resposta.

Uma resposta à esquerda!

Felizmente, essa resposta existe, como a eleição de alguns nomes deixa evidente.

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