Policiais e uma retroescavadeira acordaram os moradores da alameda Barão de Piracicaba, nos Campos Elíseos, centro de São Paulo, na manhã do dia 6 de agosto. Foi a segunda vez que a camareira Simone Ferreira acabou expulsa de casa, no mesmo bairro, em dois anos.
A poucas quadras dali, a mesma operação policial, deflagrada pelo Ministério Público, visava prender lideranças do PCC na Favela do Moinho, a última do centro da cidade. A megaoperação Salus et Dignitas – em latim, “saúde e dignidade” – envolveu mais de 1 mil agentes. Tomou todos os jornais.
O Ministério Público apontou que, na favela, funcionava a “base de inteligência” do Primeiro Comando da Capital. A justificativa da remoção dos moradores da região era que os imóveis lacrados eram utilizados como apoio para os traficantes da região da Cracolândia.
Aquelas mesmas quadras lacradas pela polícia, no entanto, já têm um destino. Elas estão na lista dos imóveis a serem demolidos no megaprojeto do governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, de mudança da sede do governo estadual para o centro.
“Nesse lugar, para eles, só tem bandido, pessoas que não prestam. É um preconceito racial. E agora vem o governador dizer que vai desapropriar esse lugar para colocar a classe média”, diz Ferreira. Ela recebeu um papel que lhe garante uma unidade habitacional na Barra Funda, bairro próximo ao centro. Mas o prédio ainda está em construção – e ela já recebeu a ordem de despejo da atual residência.
Ao longo dos últimos cinco meses, o Intercept Brasil acompanhou a rotina de Simone e de outras famílias que serão impactadas pela PPP, vivenciando diversas operações policiais na região, bem como reuniões e manifestações contra e a favor do projeto.
O plano, viabilizado por uma parceria público privada, PPP, é apoiado por Ricardo Nunes, candidato à prefeitura pelo MDB – e se tornou uma bandeira na corrida eleitoral.
Com custo de R$ 4 bilhões, a PPP foi proposta para “revitalizar o centro de São Paulo” e “reduzir os custos de operação dos aparelhos públicos”, unindo-os em uma mesma esplanada ao redor do atual Parque Princesa Isabel. Entretanto, urbanistas e movimentos sociais têm denunciado a especulação imobiliária por trás do projeto.
LEIA TAMBÉM:
- Cinco fatos para você não falar besteira sobre a Cracolândia
- VÍDEO: Perseguido por vereador bolsonarista, futebol é meio de dignidade na Cracolândia de São Paulo
- Igreja e herdeiros têm os prédios abandonados mais caros em SP, revela pesquisadora
Um levantamento do LabCidade, laboratório de pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, destaca que pelo menos metade dos órgãos estaduais já têm sede no centro da capital. Além disso, apesar da retórica de que a PPP trará vida para o centro, para construir a esplanada, pelo menos quatro quadras da região serão demolidas, expulsando cerca de 800 pessoas que hoje vivem ali. Com a demolição de suas casas, o destino delas é incerto.
Remanescente da ocupação negra no centro expandido de São Paulo, o bairro de Campos Elíseos reúne uma população de classe baixa, que habita ocupações, pensões, cortiços e a Favela do Moinho.
O Plano Diretor paulistano estabelece que parte das quadras alvo da PPP são Zonas Especiais de Interesse Social, as ZEIS, demarcadas para assentamentos habitacionais de população de baixa renda. No entanto, até agora, os documentos oficiais do projeto no site de parcerias incluem apenas as informações gerais, o decreto e a ata de uma primeira reunião – e nenhum desses documentos cita os moradores das quadras.
A única menção ao destino dos moradores que serão desapropriados é genérica: diz que a “Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, por meio dos seus programas e ações previstos para a área central poderá priorizar projetos, públicos e privados, para o entorno do Centro Administrativo”, com moradias “para atender ao reassentamento digno dos atuais moradores mais carentes”.
As informações gerais do projeto apenas colocam que seu principal objetivo é a “requalificação e revitalização do centro de São Paulo a partir de um projeto de recuperação dessa região degradada”.
Lançado em março deste ano, o projeto da PPP já premiou em R$ 1 milhão arquitetos ganhadores de um concurso público para o desenho da esplanada. No entanto, até hoje, não foi realizada nenhuma audiência pública com os moradores que serão atingidos.
Mapeados por servidores da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo ao longo dos últimos meses, os moradores, em grande parte, já integram há anos a fila da habitação popular. Diversas famílias já haviam sido expulsas anteriormente de quadras da região para a construção de outros projetos.
É o caso de Simone de Fátima Ferreira. Em 2017, o então prefeito João Doria, do PSDB, também havia anunciado uma PPP com a mesma promessa: revitalizar o bairro. Naquele ano, em que Doria afirmou que ia “acabar com a Cracolândia” com operações policiais violentas, a insegurança causada pela dispersão do fluxo virou moeda de troca para a implantação do projeto.
Quadras inteiras foram desapropriadas, inclusive a que Ferreira vivia. Várias unidades habitacionais para baixa renda foram construídas, mas a população encontrou entraves burocráticos para ter acesso a elas.
Das 189 famílias removidas, só 51 foram aprovadas para atendimento habitacional, segundo a própria prefeitura informou em resposta a um pedido feito por meio da Lei de Acesso à Informação. Simone Ferreira foi uma das desclassificadas na ocasião. Desde então, ela aguarda moradia – e já será removida mais uma vez.
Moradores dos Campos Elíseos têm denunciado a relação entre o projeto da PPP, o crescimento do discurso de ódio na região e uma série de operações policiais que vêm criminalizando e expulsando famílias pobres do bairro nos últimos anos.
Gisele Brito, doutoranda em urbanismo e coordenadora de direito a cidades antirracistas do Instituto Peregum, avalia que, na lógica da “promoção de segurança” a qualquer custo tem “valido de tudo”. “Não importa se você vai expulsar toda a população negra que tem ali”.
Hoje, a população em situação de rua em São Paulo chega a 80 mil pessoas.
Segundo o advogado Benedito Barbosa, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, o projeto deveria ter partido da criação de um Conselho Gestor das ZEIS. “Mas querem implantar esse negócio rapidamente, jogar tudo isso aqui no chão. Isso é completamente ilegal”, avalia.
Na inauguração do Parque Princesa Isabel, em abril deste ano, o vice-governador Felício Ramuth, do PSD, destacou a mudança da sede do governo, afirmando que a gestão pretende transformar a região no lugar mais “assistido e vigiado” de São Paulo e “devolver o centro da cidade para o cidadão de bem”.
Organizações de moradores, como a Associação Pró Campos Elíseos Melhor, liderada pelo empresário Iézio Silva, que já postou fotos com Ricardo Nunes, Tarcísio de Freitas e outros apoiadores do projeto em suas redes sociais, também têm defendido o projeto sob o argumento da insegurança causada pela Cracolândia. Alinhadas à agenda de políticos da extrema direita, as associações têm apoiado a criminalização de projetos sociais que visam o cuidado dos dependentes químicos.
Espaços deliberativos como o Conselho Comunitário de Segurança de Santa Cecília, que envolve o bairro de Campos Elíseos, também têm ecoado esse movimento, mobilizando moradores de classe média com demandas pela criminalização da doação de alimentos.
Enquanto isso, Santa Cecília, distrito que engloba o bairro de Campos Elíseos, lidera o ranking de população em situação de rua no município, atualmente em mais de 80 mil pessoas segundo dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas para a População em Situação de Rua.
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.
Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.
A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.
Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.