Enquanto você lê este texto, o brasileiro Luckas Viana dos Santos está sendo mantido escravo em uma fábrica de golpes virtuais na fronteira de Mianmar com a Tailândia, na Ásia. Parece uma história de filme, mas é real: o Intercept Brasil teve acesso a mensagens enviadas pelo brasileiro a amigos e confirmou que o Ministério das Relações Exteriores acompanha o caso.
A ONU estima que centenas de milhares de pessoas sejam mantidas em condições análogas à escravidão após terem sido traficadas na região da Tailândia, Mianmar e Camboja. O trabalho consiste em aplicar golpes virtuais internacionalmente, em escala massiva, sob a mira de homens armados.
O pesadelo do brasileiro que caiu no esquema começou no início de outubro. Santos buscava um novo trabalho na Ásia após ter sido demitido da área de atendimento ao cliente em plataformas de apostas nas Filipinas.
Ele decidiu, então, postar que procurava emprego em um grupo no Telegram focado em vagas de trabalho na região. Logo conseguiu duas entrevistas. Em uma delas, para uma vaga em atendimento ao cliente em aplicativos de relacionamento, recebeu uma proposta que considerou interessante: salário de US$ 1,5 mil – aproximadamente R$ 8,5 mil – além de moradia no local para um contrato de seis meses.
A empresa tinha sede em Mae Sot, uma cidade no oeste da Tailândia que faz fronteira com Mianmar. Ficou acordado que, em 7 de outubro, um representante da empresa buscaria Santos, de 31 anos, em Bangkok para a viagem de seis horas.
No percurso, porém, ele percebeu que algo poderia estar errado. E avisou pelo Telegram o amigoCaio, que vive na Ásia e também trabalha com plataformas online. “No meio do nada, entramos numa selva, pegamos um barco e tenho que esperar mais um carro”, disse Santos em mensagens às quais o Intercept Brasil teve acesso.
“Parece tráfico”, acrescentou, com uma risada. Àquela altura, ele já havia trocado de carro três vezes e compartilhado sua localização com o amigo por temer pela sua segurança.
Caio contou ao Intercept que recebeu mais algumas mensagens de Santos em que ele dizia já estar em Mianmar — a certeza veio após ter visto que as placas na estrada estavam em birmanês, a língua oficial do país. A mensagem seguinte dizia apenas uma frase: “chama a polícia”.
Santos voltou a se comunicar 30 minutos depois. Disse que estava tentando resolver a situação, mas que havia muitas pessoas armadas. Pediu ao amigo para que ele não chamasse a polícia porque podiam matá-lo.
Desde então, Caio recebe mensagens esporádicas do amigo, sempre de números novos de Telegram e com pedidos para que ele não responda. A última localização que Santos compartilhou mostrou que ele estava em Kyaukhat, uma cidade em Mianmar na fronteira com a Tailândia, a 33 quilômetros de Mae Sot.
Em uma das mensagens ao amigo, Santos pediu que sua foto e sua história fossem divulgadas. O Intercept publicou a foto a pedido dele, com consentimento da família e dos amigos.
A região da tríplice fronteira entre Tailândia, Mianmar e Camboja é justamente o epicentro dos “complexos” ou “fábricas de golpes”. Em agosto de 2023, a ONU estimou que, só em Mianmar, cerca de 120 mil pessoas estariam sendo mantidas em condições análogas à escravidão após terem sido traficadas. No Camboja, haveriam mais 100 mil.
As fábricas de golpes são operadas por grupos de crime organizado transnacionais. Na prática, funciona assim: pela internet, pessoas são ludibriadas a acreditar que estão sendo contratadas para trabalhos legítimos e, então, acabam traficadas para estes complexos, onde são mantidas sob abusos e condições desumanas.
As vítimas são obrigadas a aplicar golpes pela internet, frequentemente tendo como suas vítimas pessoas que estão a milhares de quilômetros, em países como os Estados Unidos.
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Um dos golpes é conhecido como “abate do porco”, em que as vítimas são atraídas por promessas românticas e convencidas a fazer transferências de dinheiro, muitas vezes em criptomoedas. Ao longo de dias, os golpistas, se passando por mulheres, estabelecem uma relação com as vítimas, “engordando” o porco antes do abate – ou seja, ganhando confiança até o golpe ser dado.
Os campos são, em maioria, operados por grupos criminais que tem o chinês como língua oficial ou dominante, sejam chineses, taiwaneses ou até birmaneses, explicou ao Intercept Mina Chiang, fundadora e diretora da Humanity Research Consultancy, uma organização social sediada no Reino Unido que combate a escravidão moderna.
‘Isso não é vida’, diz brasileiro vítima de tráfico humano
Nas raras mensagens que tem conseguido enviar ao amigo, Santos tem falado sobre as condições do complexo onde está. Disse que o dia de trabalho dura 16 horas, das 17h30 até as 8h da manhã seguinte. Há três pausas para comer. Ele não pode tomar banho todos os dias.
Santos contou que só é pago caso consiga aplicar o golpe com sucesso. Para cada pessoa que fizer uma transferência, recebe US$ 100. Mas para cada cliente perdido, são descontados US$ 100. A situação configura servidão por dívida, em que pessoas são obrigadas a trabalhar para pagar uma dívida que lhes foi imposta.
“Em alguns casos, as regras são criadas de maneira um pouco mais razoável, embora estejam cometendo um crime, e você até consegue fazer dinheiro lá”, destacou Chiang. “Mas em alguns campos, desde o princípio eles de fato não querem que você consiga fazer dinheiro. Eles só querem extrair o máximo que puderem da sua mão de obra.”
Em muitos dos campos, afirma a diretora da Humanity Research Consultancy, existe este esquema de servidão por dívida, como no caso de Santos. “É um design intencional de um sistema que mesmo que você trabalhe muito, muito mesmo, você nunca conseguirá acertar as contas”, disse a diretora.
Outro ponto comum nestes espaços é a combinação entre violência e restrição de comunicação. As vítimas são torturadas caso se recusem a seguir ordens ou caso sejam pegas usando o celular para entrar em contato com familiares e amigos.
No primeiro dia, quando chegou, Santos afirmou ter sido ferido com uma arma de choque por ter ligado para Caio. Dias depois, disse que foi repreendido e teve que ficar uma hora segurando um galão de água nas costas. “Eu vou morrer aqui, eu só quero ir embora. Isso não é vida”, escreveu.
Governo brasileiro diz que monitora o caso
O Intercept entrou em contato com o Ministério das Relações Exteriores, que informou estar acompanhando o caso por meio das suas embaixadas em Bangkok e Yangon. Também destacou que “está em contato com as autoridades locais competentes e presta assistência consular aos familiares do brasileiro”.
Nos últimos anos, países realizaram operações para resgatar grupos de trabalhadores das “fábricas de golpes”. Em abril deste ano, centenas de indianos foram retirados de um complexo no Camboja. Em fevereiro, uma operação coordenada entre autoridades da Tailândia, Mianmar e China repatriou cerca de 1.200 pessoas, a maioria chineses.
Houve algumas vezes em que o governo chinês, juntamente com vários governos regionais, liderou operações de incursão, que resultaram em processos judiciais e resgates em massa, de acordo com Chiang, da Humanity Research Consultancy.
“Infelizmente, neste momento, o governo chinês é quase o único regime ou exército que os criminosos têm medo, pois houve momentos em que a polícia chinesa realizou operações no Camboja ou em Mianmar, entrando em diferentes complexos”, explicou.
Santos disse ao amigo que acredita ser o único brasileiro no local. Relatou, ainda, que há muitos filipinos, paquistaneses, cidadãos do Sri Lanka e de Bangladesh e etíopes – que são submetidos a condições ainda mais degradantes que ele.
Ao Intercept, Chiang explicou que o caso de Mianmar é particularmente desafiador em comparação a outros países onde existem complexos desse tipo, já que os campos estão localizados numa zona de conflito ativo. Desde que uma junta militar tomou o poder em Mianmar, em fevereiro de 2021, um movimento que iniciou com protestos se intensificou para uma rebelião armada contra o regime.
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