Amin queria saber se iria mesmo brincar na areia, parecendo não acreditar no passeio que faríamos. Passava do meio-dia quando chegamos à praia Ramlet al-Baida, em Beirute, em uma sexta-feira de muito sol e calor. Poderia ser o começo de um final de semana normal, se o dia não fosse 4 de outubro de 2024, no Líbano sob agressão israelense.>
Amin, de 7 anos, seu irmão Sadek, de 13, e a mãe dos dois, Lindaura, 51, estavam entre as mais de 400 pessoas alojadas em um dos prédios da Universidade Libanesa, a alguns quarteirões da praia. Naquela sexta, os três aproveitaram a quebra do terror cotidiano. A caminhada para a entrevista virou um banho de mar que durou mais de uma hora.
A família brasileira-libanesa chegara ao alojamento uma semana antes, em 27 de setembro, fugindo de Haret Hreik, o bairro mais bombardeado de Dahieh, o subúrbio sul de Beirute. Além de Lindaura e das duas crianças, foram abrigados ainda seu marido, sua cunhada e a sogra, idosa. Lindaura nasceu em Assis Chateaubriand, no Paraná, onde conheceu o marido, libanês, aos 18 anos. Mudou-se para o Líbano em 1991 e teve seis filhos: quatro meninas, todas já maiores de idade, e os dois meninos.
No dia em que fugiram, Israel lançou cerca de 85 bombas detonadoras de bunkers no subúrbio e derrubou seis prédios residenciais inteiros – um deles, em frente à casa de Lindaura. Muitos outros edifícios da área – uma das mais densamente povoadas do país – tiveram suas estruturas comprometidas. Foram confirmados seis mortos naquele dia, entre eles Hassan Nasrallah, então secretário-geral do Hezbollah, e 91 feridos.
“Cada bomba faz tremer todo o edifício. E ouvimos mais de 15. Foi uma chuva de bombas. Tremeu tanto o chão que eu caí”, contou Sadek, lembrando de como seu coração “parecia que ia sair do peito” de tão acelerado. Amin ficou em choque por três dias, com os olhos arregalados, já no alojamento. Lindaura conta que ficou tonta por dias, ainda ouvindo o zumbido das bombas: “Parece que algo balança no nosso cérebro”, falou.
Não era o primeiro ataque à região. Na sexta-feira anterior, outro bombardeio matara mais de 30 pessoas em Dahieh, entre elas três crianças. Poucos dias antes, tinham ocorrido as explosões dos pagers e walkie-talkies em áreas residenciais em vários pontos do Líbano, inclusive o subúrbio Sul de Beirute. Dois dispositivos explodiram na rua em que mora a família.
“Escutei duas explosões muito fortes. Olhei da sacada do meu apartamento e vi dois amontoados de pessoas em dois pontos da rua. Meu marido foi olhar e viu um dos homens com os rins expostos. O pager tinha explodido no bolso dele, no meio da rua. Ele não sobreviveu”, disse.
Naqueles dias, a família pensou em sair de casa, aconselhada por amigos e familiares. “Mas nós não tínhamos para onde ir. Temos <a data-tooltip=”Depois da crise econômica de 2019, o banco central libanês congelou depósitos de todos os correntistas. Depois, foi habilitada a retirada limitada de valores mensais.”>dinheiro no banco</a>, mas só podemos retirar US$ 300 por mês. Com isso e o salário do meu marido não conseguimos pagar aluguel e a alimentação da família”, afirmou.
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Mas, naquele 27 de setembro, a intensidade e a proximidade dos ataques forçaram o deslocamento imediato. “Estávamos debaixo de bombas. Peguei os dois meninos e deitei em cima deles. As bombas não paravam, e eu pensei que já tínhamos morrido. Meu marido filmou na varanda, eu peguei algumas peças de roupa e saímos. Buscamos minha sogra na casa dela e fomos para o alojamento”, contou ela, que também me disse que Amin, o filho mais novo, gritou tão alto que a assustou. “Eu nem sabia que ele conseguia gritar tão forte”, observou.
Sadek voltou ao bairro dias depois, com seu pai, para tentar buscar algumas roupas e pertences. Tudo precisava ser feito muito rápido, em minutos, porque os bombardeios israelenses ao subúrbio começaram a ser diários. Lindaura conta que, em um descuido do marido, o menino de 13 anos se aproximou de uma das crateras formadas pela explosão dos edifícios com as bombas detonadoras de bunkers.
“Dava pra fazer uma casa embaixo da terra de tão grande que era o buraco”, disse o menino. “Eu vi pessoas debaixo dos escombros. Eram pedaços de corpos, brinquedos de crianças, mochilas. Dá muita dor. Foi muito triste”, descreveu. A família seguia sem notícias de vizinhos, familiares e amigos das crianças, e Lindaura temia que os corpos de alguns deles poderiam ainda estar sob os escombros.
Sala de aula, quarto de dormir
Muito articulado, Sadek fala português fluente, além de árabe, sua língua materna, espanhol – parte da família de Lindaura é argentina, e a família viveu por um período em Foz do Iguaçu, Paraná, na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai –, inglês e um pouco de francês, que aprende na escola. Adora nadar, e naquele dia em que nos encontramos estava muito feliz depois do banho de mar.
Caminhando de volta ao alojamento, confidenciou, com um sorriso, que o lado bom daquilo tudo eram os dias de folga da escola. “Mas eu sou muito bom aluno, nunca fui reprovado e já fui várias vezes o primeiro da classe”, completou Sadek.
As aulas no Líbano haviam sido suspensas, e a maioria das escolas públicas, transformadas em alojamentos. Dias depois, algumas escolas particulares retomaram as atividades em modo remoto, enquanto os alunos das instituições públicas continuam sem aulas – agravando a desigualdade no acesso à educação que já marca o país.
Sem aulas, Sadek e Amin passaram a dormir em uma dessas salas, na Faculdade de Comunicação da Universidade Libanesa – a única pública do país.
As mais de 400 pessoas se dividem em salas exclusivas para mulheres e crianças, como a em que estavam Lindaura, sua sogra, a cunhada e os dois meninos; espaços mistos; e outros apenas para homens, como o que estava o marido de Lindaura. Cada centímetro de chão é muito disputado, e o alojamento, já superlotado, seguia recebendo novas famílias no dia da visita.
Havia ainda muitas famílias nos pátios e áreas comuns, como corredores e saguões. E outras, que nem isso conseguiram, chegavam apenas à noite para dormir nas escadas. “De madrugada, não dá nem pra andar, porque tem gente dormindo por todo o chão”, contou Lindaura.
A companhia pública de abastecimento de água enche o reservatório uma vez ao dia. “Mas não dura mais que duas horas”, descreveu a brasileira. Os banheiros ficam praticamente inutilizáveis, mas não podem ser interditados. Nas poucas horas em que o fornecimento é restabelecido, quem consegue usa o banheiro. É também quando os alojados aproveitam para faxinar todas as instalações.
Há tensão também quanto à comida. Toda manhã, são entregues cerca de 200 manaiches (um pão com especiarias, típico café da manhã da região do Levante), insuficientes para todas as famílias. Algumas mulheres, como Lindaura, assumem a liderança e organizam a distribuição dos alimentos, mas os conflitos não são raros.
Repatriação é marcada por ansiedade
O primeiro vôo de repatriação do Líbano para o Brasil partiu em 5 de outubro. Lindaura e seus filhos não foram chamados, assim como várias de suas amigas e vizinhas, também desalojadas. Foram cerca de 3 mil pedidos de repatriação, segundo o Itamaraty.
A família passou a noite de 4 para 5 de outubro na expectativa de um contato da Embaixada, sob o som constante de drones e também de bombas – naquela noite, as fortes explosões em Dahieh foram ouvidas do alojamento na Faculdade de Comunicação. A convocação não veio.
Dois dias depois, chegou a mensagem, no início da manhã. À tarde, Lindaura, Sadek e Amin embarcaram para o Brasil no avião da Força Aérea Brasileira. Seu marido ficou no Líbano, cuidando da mãe, idosa, e seguindo com seu trabalho, que ainda não foi interrompido. “Já estou com saudades, pai, te amo”, disse Sadek no vídeo de despedida gravado pela mãe.
Instalada em Foz do Iguaçu, agora parte da família luta para recomeçar a vida no Brasil. Acolhida na casa de uma amiga, a brasileira ainda busca um apartamento mobiliado que aceite crianças – foram várias negativas, segundo Lindaura – e tenta contato com escolas para regularizar as matrículas dos filhos.
“Estamos torcendo para nosso prédio [no Líbano] não cair, para termos para onde voltar quando tudo passar. E vamos caminhando. Hoje mesmo, ganhei shorts e camisetas para as crianças. Viemos quase sem roupas, porque, com os drones sobrevoando, entramos em casa só por alguns minutos e não consegui escolher nada. Hoje chegaram essas roupas e estou feliz da vida. A vida segue”.
Naquela sexta-feira da entrevista, Amin brincou, afinal, na areia. Construiu uma casa, com entrada, portão e móveis. Quando saíamos, disse que, um dia, vai ter um barco e uma casa perto da praia, para poder ir nadar quando quiser.
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