A pedagoga Laís Bezerra estava em um ponto de ônibus na zona sul de São Paulo, em abril deste ano, quando foi abordada por um rapaz com um abaixo-assinado. Ele dizia “coletar assinaturas para melhorias na educação e segurança”, Bezerra me contou. Ela assinou. Foi só em outro dia, após buscar no Instagram o que era “Missão”, que se deu conta de que ela poderia ter colaborado com a coleta de assinaturas para a fundação do partido do MBL.
O Intercept Brasil localizou ao menos 13 pessoas que disseram ter sido enganadas da mesma forma: acabaram assinando o que pensavam ser um abaixo-assinado por melhorias na área de segurança, saúde e educação, e agora suspeitam que tenham sido usadas para ajudar na criação do Missão.
O MBL diz que “todo o processo de captação de assinaturas de apoiamento está sendo feito de forma regular”. Também afirmou que denunciou ao Ministério Público “todas as vezes que houve suspeita de fraude por qualquer coletor e as devidas fichas não foram somadas”.
Sonho antigo do MBL, a criação do próprio partido depende da coleta de mais de 500 mil assinaturas. Não é uma tarefa fácil: Jair Bolsonaro, por exemplo, falhou miseravelmente na tentativa de criar seu partido, o Aliança pelo Brasil.
Nas atuais regras, é preciso apresentar ao Tribunal Superior Eleitoral, em um período de dois anos do início da coleta, um equivalente a 0,5% dos votos válidos para deputados federais em um total de nove estados. Atualmente, isso equivale a 547 mil assinaturas.
“Antes, os partidos davam entrada no TSE e, em tese, tinham o tempo que quisessem. Isso podia levar anos e anos”, disse ao Intercept Brasil o advogado Fernando Neisser, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP, além de membro da coordenação acadêmica da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.
‘Jamais assinaria o documento se soubesse sua real finalidade.’
O ponto de coleta, de acordo com Bezerra, foi na Rua José Guerra, no bairro Chácara Santo Antônio, em São Paulo. Segundo ela, os coletores costumam ficar em locais de alto movimento, onde as pessoas costumam estar com pressa, o que dificulta na hora de conferir o que estão assinando.
No Instagram do Missão, são frequentes os relatos como o de Bezerra. Não é possível saber se o nome das pessoas já foi inserido no sistema do TSE para criação de partidos políticos, já que a área do site que disponibiliza a consulta está fora do ar pelo menos desde julho. Há mais de dois meses, tentamos contato com a assessoria de imprensa do TSE para ter acesso aos dados, mas não houve resposta. A Procuradoria Geral Eleitoral também não nos respondeu.
Para checar se o abaixo assinado apresentado realmente atende aos requisitos da Justiça Eleitoral, nós apresentamos o modelo de uma ficha de apoio à criação do Missão. As pessoas consultadas pela reportagem confirmaram que era o mesmo material.
‘Estava dobrada ao meio, e ele me mostrou apenas onde eu deveria assinar’
Depois desse dia, Bezerra conta que o mesmo rapaz tentou abordá-la novamente, e acabou discutindo com o coletor. “Ele tentou me convencer de que havia me informado que era para a criação do partido. Falei pra ele no dia que eles enganavam as pessoas e que não era apenas eu que estava reclamando”, complementou a pedagoga. Ela diz que “jamais assinaria o documento se soubesse sua real finalidade”. Com medo, após a discussão, ela chegou a tirar uma foto dos coletores.
Neisser explica que, caso existam elementos que comprovem a fraude na coleta de apoios, é necessário que o caso seja levado ao Ministério Público Eleitoral para averiguação de possível crime de falsidade ideológica eleitoral. Segundo o advogado, “havendo indícios de falsidade na obtenção, mesmo que as assinaturas sejam materialmente verdadeiras, mas o motivo dito às pessoas para obtê-las é falso, elas devem ser desconsideradas”.
Carla, que preferiu não se identificar por medo de represálias, estava na praia do Leblon, no Rio de Janeiro, quando foi abordada por um dos coletores do MBL.
Segundo ela, o coletor abordou todos que estavam ao redor. Seu discurso era parecido com os outros relatos: o de que era “um abaixo assinado para melhorias na educação da escola pública, levar matérias novas, segurança e material escolar para as pessoas que não têm renda”, comentou.
‘Só com algumas palavras já entendi a cilada que me meti.’
Ela ainda detalhou como foi o momento da assinatura: “A gente não preenche tudo. Ele vai perguntando nossos dados e escreve sem a gente ver. Aí ele pega a prancheta, meio que levanta só o finalzinho e fala ‘agora é só assinar aqui’. Aí a gente assina. Ele ainda esconde o que a gente está assinando”.
Após recolher duas assinaturas, de Carla e de sua namorada, ela chegou a perguntar se era uma ficha para filiação em algum partido político, sendo logo repreendida com um “não, não, não”, reiterando que seria para melhorias no ensino público da cidade.
Carla conta que se deu conta só depois de assinar a ficha quando foi procurar no Instagram o que era ‘Missão’, após ver o escrito na camiseta do coletor. “Acho que 90% das pessoas que estavam lá na praia assinaram e não se deram conta”, disse.
O mesmo aconteceu com a estilista Natália Ayumi. Ela afirma ter assinado o documento no dia 19 de agosto deste ano, após um dos coletores afirmar ser um abaixo assinado para melhorias das escolas públicas.
“No dia, tinham acho que dois ou três coletores ali no ponto da Faria Lima, em frente ao Largo da Batata, que é um ponto que fica cheio. Todos estavam com o mesmo discurso”.
Ela comentou que estavam com uma prancheta, e que o único objeto aparente era o crachá, que não deixava evidente. “Como o logotipo está em cima [da ficha], estava coberto. E outra coisa que me chamou muita atenção, quando eu fui escanear o QR code do crachá, que não tinha mostrado em momento algum, ele tomou um susto como se não esperasse”.
Após ser direcionada ao site do partido, Ayumi comentou que começou a ler as propostas do movimento. “Obviamente, tudo muito vago e com a profundidade de um papel. Mas só com algumas palavras já entendi a cilada que me meti”, afirmou.
Ela comenta que tentou falar com alguns políticos para denunciar o que tinha acontecido, mas não obteve respostas: “Cheguei a mandar mensagem para vários políticos, mas ninguém me respondeu. Época de eleição é complicado chegar até eles”.
A estilista foi novamente abordada no dia seguinte pelos coletores: “apareceu mais um menino, eu disse que queria tirar minha assinatura, que não concordava. Falei o que aconteceu, ele ficou meio sem graça e foi até embora depois. Falei alto e todo mundo ficou olhando”.
LEIA TAMBÉM:
- As estratégias antiéticas do MBL, o ‘movimento que está mudando o Brasil’
- Confissões de uma mulher dentro do MBL
- MBL falou em comprar assinaturas e mudar leis eleitorais para fundar partido
Embora defenda a criação de “um novo Brasil”, o partido do MBL repete estratégias bem conhecidas da política. Em 2013, ano de registro do Solidariedade, uma investigação mostrou que o partido de Paulinho da Força fraudou assinaturas inclusive de uma autoridade do Conselho Nacional de Justiça.
Na ocasião, Bruno Dantas, na época servidor do Senado Federal, confirmou que teve a assinatura fraudada pela equipe de coleta da sigla para alcançar as fichas necessárias para criação do partido.
Outra vítima foi o ex-servidor do Senado Miguel Honorato dos Santos, falecido em 24 de setembro de 2011. A assinatura de Miguel teria sido recolhida em 2012, um ano depois do seu falecimento.
Em 2020 foi a vez do Aliança pelo Brasil, a tentativa fracassada do clã Bolsonaro de tentar criar o próprio partido. O TSE confirmou ter identificado a assinatura de sete eleitores já mortos na lista de apoio à criação da legenda.
Na época, o senador Flávio Bolsonaro, hoje filiado ao PL, disse que a inclusão dos eleitores já falecidos na lista de apoio teria sido um “erro de preenchimento”.
Partido Missão e a chave para o fundão eleitoral
Fundado em 2014, o MBL ganhou maior visibilidade pela presença nos protestos a favor do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Segundo seu próprio estatuto, o grupo defende a “liberdade para a criação de partidos políticos, transparência, paz e proteção a direitos individuais e democracia”.
Atualmente, os membros do MBL estão pulverizados entre partidos de centro-direita e extrema direita, como PSDB, União Brasil, MDB, PSD, PP e PL. Vale lembrar que Kim Kataguiri, deputado federal por São Paulo e um dos principais nomes do movimento, saiu pré-candidato à prefeitura de São Paulo pelo União Brasil. Mas o partido resolveu apoiar a reeleição de Ricardo Nunes, do MDB.
Com a criação da própria agremiação, o MBL não terá esse problema, além de, claro, ter acesso ao fundo eleitoral bilionário, que chegou ao montante de R$ 4,9 bilhões para as eleições municipais de 2024.
A maioria do fundo leva em conta se o partido possui um representante na Câmara ou no Senado, mas as novas siglas também ficam com uma parte dessa verba: 2% são divididos igualmente entre todos os partidos registrados no TSE, explicou Arthur Mello, coordenador de advocacy do Pacto pela Democracia.
Ou seja, mesmo os partidos que não tem nenhuma representação no Congresso Nacional recebem uma parte do fundo. É o caso do PRTB, de Pablo Marçal, que recebeu R$ 3,4 milhões.
‘Compra, faz um acordo’, sugeriu coordenador do MBL em áudio
Em 2020, o Intercept teve acesso a áudios enviados pelo fundador e coordenador nacional do Movimento Brasil Livre, Renan Santos, em que cogitou comprar assinaturas de um partido em formação para driblar a legislação eleitoral e ter uma sigla para chamar de sua. Com isso, parte do trabalho já estaria feito, e o movimento gastaria menos dinheiro.
Na ocasião, Renan Santos conversava com o advogado Rubinho Nunes, do União Brasil, atual vereador de São Paulo. Ele chegou a dizer “compra, faz um acordo” com os movimentos que estariam recolhendo assinaturas com base na regra antiga da legislação eleitoral.
Neste ano, nove meses após iniciar o processo de coleta de assinaturas, o MBL comunicou nas redes sociais que conseguiu atingir o número de 550 mil assinaturas, acima do total necessário para criação do partido.
No entanto, até a publicação desta reportagem, o partido contava com pouco mais de 184 mil assinaturas validadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, segundo reportagem da Folha de S. Paulo.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?