A paciência de quem pode

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A paciência é uma virtude dos privilegiados

Os muito ricos sempre podem pagar pela paciência: mas eles colhem as recompensas e o custo é dividido entre todos nós.

A paciência de quem pode

Esta matéria, originalmente publicada no site Pluralistic, foi traduzida em parceria com Cory Doctorow.

Os conservadores frequentemente atribuem a origem dos nossos problemas sociais a uma impaciência infantil, e se apresentam como os adultos sábios que entendem que “não é possível conseguir coisa nenhuma sem dar algo em troca”. Basta pensar nos memes sobre os jovens preguiçosos que preferem gastar dinheiro com avocado toast (torradas com abacate) e café chique, em vez de pagar suas dívidas estudantis.

Para essa forma de pensar, a pobreza é uma consequência da imaturidade. Ser um adulto funcional é ter sobriedade com todas as coisas: não só um adulto limita a ingestão de entorpecentes para evitar a ressaca, ele também vai à academia para evitar problemas de saúde futuros, e economiza uma parte de sua renda discricionária para cobrir uma entrada de financiamento e pagar empréstimos estudantis.

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No entanto, não se trata de ascetismo: é uma decisão madura de adiar a recompensa. Uma avocado toast é a recompensa por uma vida bem vivida: depois que você já pagou seu financiamento imobiliário e seus filhos já se formaram na faculdade, aí sim você pode tomar aquele café especial com leite de aveia. Isso é apenas um “raciocínio lógico”: cada dia que você deixa de pagar seu financiamento estudantil é mais um dia de juros compostos. Pague a dívida primeiro, e você economizará o equivalente a vários cafés da manhã em juros, e com isso o seu consumo médio de avocado toasts pode aumentar drasticamente.

Dividir o mundo entre pacientes (os maduros, adultos, sábios) e impacientes (os infantis, tolos, irresponsáveis) provoca importantes efeitos políticos. Isso transforma todos os problemas sociais em falhas pessoais: o detento no banco dos réus que roubou para sobreviver pode ser enquadrado como o  incapaz que saía para festas em vez de estudar, e por isso não conseguiu obter as notas necessárias para uma bolsa de estudos por mérito, um diploma de primeira classe, e um emprego bem remunerado.

Dividir a espécie humana entre “os sábios” e “os tolos” cria uma base ética para a hierarquização. Se alguns de nós somos nascidos (ou criados) para a sabedoria, então naturalmente essas pessoas deveriam estar no comando. Além disso, colocar os tolos inatos no controle é uma fórmula para o desastre. O cientista político Corey Robin considera que essa é a crença em comum que unifica todos os tipos de conservadorismo: alguns nascem para comandar, outros nascem para serem comandados.

É por isso que os conservadores ficam tão ofendidos com as ações afirmativas, que partem da premissa de que a ausência das minorias nos corredores do poder deriva de um viés sistêmico. Para os conservadores, o fato de que pessoas como eles mesmos estão no controle das coisas é prova suficiente de sua própria virtude e aptidão para o comando. No cânone conservador, o ato de afastar integrantes dos grupos dominantes e abrir espaço para membros de minorias desfavorecidas não é justiça, é uma perigosa “aparência de virtude” que coloca pessoas infantis e inaptas em posições de autoridade.

Mais uma vez, isso causa importantes efeitos políticos. Se alguém tem um compromisso ideológico com a desregulamentação, e então um gigantesco cargueiro marítimo, desregulamentado, colide com uma ponte, é possível evitar qualquer discussão sobre a possibilidade de regulamentar novamente o setor, sob o argumento de que vivemos em uma era corrupta, em que os inaptos são injustamente alçados a posições de autoridade. Essa ponte não foi destruída pela desregulamentação — sua queda foi culpa do cotista que comandava o navio:

A ideia de uma sociedade constituída pelos pacientes e sábios e pelos impacientes e tolos é tão antiga quanto a fábula de Esopo, “A cigarra e a formiga”, mas ganhou um verniz de legitimidade científica em 1970, com o lendário “Experimento do Marshmallow de Stanford“, de Walter Mischel.

Nesse experimento, crianças foram deixadas sozinhas em uma sala trancada, com um único marshmallow à sua frente, depois de ouvirem que receberiam dois marshmallows dali a 15 minutos, mas apenas se esperassem até lá para comer o marshmallow que estava ali. Mischel acompanhou essas crianças por décadas, e descobriu que aquelas que adiaram a recompensa e ganharam o segundo marshmallow se saíram melhor em todos os quesitos — escolaridade, emprego e renda. Exames de imagem cerebral feitos nessas pessoas já na idade adulta revelaram diferenças estruturais entre os pacientes e os impacientes.

Por muitos anos, o Experimento do Marshmallow de Stanford foi usado para validar a divisão da humanidade entre os pacientes e sábios e os impacientes e tolos. Dizia-se que aqueles exames de imagem revelavam o fundamento biológico para pensar nos governantes inatos da humanidade como uma subespécie superior, um segredo a céu aberto, destinados a comandar.

Veio então a “crise da replicação”, em que vários estudos psicológicos fundamentais de meados do século XX foram refeitos por cientistas cujo vigor renovado refutou e/ou complicou os resultados que definiram a carreira dos gigantes da “ciência” do comportamento. Quando os pesquisadores refizeram os testes de Mischels, descobriram uma camada importante em seus resultados. Ao entrevistar as crianças que comeram os marshmallows imediatamente, em vez daquelas que esperaram para ganhar dois marshmallows, eles descobriram que essas crianças não eram impacientes, elas eram racionais.

As crianças que comeram os marshmallows tinham maior probabilidade de pertencerem a famílias mais pobres. Essas crianças haviam sido repetidamente decepcionadas pelos adultos em suas vidas, que frequentemente quebravam as promessas feitas a elas. Algumas vezes, as intenções eram boas, como quando um dos responsáveis em situação financeira precária prometia uma guloseima, mas não conseguia cumprir porque precisou pagar uma conta inesperada. Outras vezes, era apenas insensibilidade, como no caso de professores, assistentes sociais e outras figuras de autoridade, que enganavam as crianças com promessas que sabiam que não poderiam cumprir.

As crianças que comeram os marshmallows tinham analisado racionalmente suas experiências anteriores, e estavam fazendo uma aposta lógica, de que um marshmallow em um prato, agora, valia mais do que a promessa de dois marshmallows por um adulto desconhecido. As crianças “pacientes”, que esperaram pelo segundo marshmallow, não tinham tanta paciência, e sim, confiança: elas haviam sido criadas por pais com o tipo de reserva financeira que lhes permitia cumprir suas promessas, e o tipo de poder social que convencia outros adultos — professores, por exemplo — a cumprirem as promessas feitas aos seus filhos.

‘Todos experimentam uma mistura de paciência e impaciência, mas para os privilegiados pelo nascimento, as consequências da impaciência são atenuadas, e os benefícios da paciência são ampliados.’

Entendendo isso, a lição do Experimento do Marshmallow se inverte. A razão pela qual as crianças dos dois marshmallows tiveram sucesso é o fato de que elas tiveram origens privilegiadas: suas notas mais altas se deviam aos professores particulares, não à sua escolha de estudar em vez de sair para festas. Seus bons empregos e altos salários vieram dos contatos universitários e familiares, não do mérito. Suas diferenças cerebrais eram resultado de uma vida livre do extremo estresse crônico associado à pobreza.

Após a crise da replicação, a moral do Experimento do Marshmallow de Stanford é que todos experimentam uma mistura de paciência e impaciência, mas para os privilegiados pelo nascimento, as consequências da impaciência são atenuadas, e os benefícios da paciência são ampliados.

Isso explica muito sobre o verdadeiro comportamento das pessoas ricas. Tomando como exemplo Charles Koch, que fez o império de carbono de seu pai crescer mil vezes, fazendo investimentos de longo prazo em automação. Koch é um ferrenho defensor da paciência e do pensamento de longo prazo, e desdenha em voz alta das empresas de capital aberto, em razão da pressão dos acionistas para dar preferência à extração de curto prazo em detrimento do planejamento de longo prazo. Ele tem um bom argumento.

Koch não é apenas um barão dos combustíveis fósseis, ele também tem grande sucesso como ideólogo. Koch é um entre os poucos oligarcas que transformaram a política americana por meio de um paciente investimento milionário em institutos de pesquisa, universidades, comitês de ação política, organizações de manipulação, tribunais particulares e outros tentáculos que envolvem o mundo. Após décadas de redefinição de distritos eleitorais (“gerrymandering”), supressão de eleitores, mudanças na composição dos tribunais superiores e propaganda, a classe dos bilionários assumiu o controle dos EUA e de suas instituições. A paciência compensa!

Mas o longoprazismo de Koch é altamente seletivo. É possível dizer que Charles Koch tem mais responsabilidade pessoal por atrasar as medidas relativas à emergência climática do que qualquer outra pessoa, viva ou morta. O combate aos gases do efeito estufa é a crise mais “a cigarra e a formiga” de todas. Cada dia que deixamos de tomar alguma medida em relação a essa dívida climática previsível e bem compreendida fez os juros compostos acumularem. Deixando de agir, economizamos bilhões — mas deixamos nosso “eu” do futuro com trilhões de dívida, sem possibilidade de pedido de falência.

Ao nos convencer a não investir na reestruturação em prol das energias renováveis, para poder ganhar seus bilhões, Koch estava cometendo o pecado da avocado toast prematura, multiplicado por um bilhão. Sua incapacidade de adiar a recompensa, que ele impôs a todos nós, significa que provavelmente perderemos boa parte das cidades litorâneas do mundo (incluindo o estado da Flórida, nos EUA), e precisaremos arranjar trilhões para lidar com incêndios florestais, pragas zoonóticas, e centenas de milhões de refugiados climáticos.

‘A paciência seletiva dos ricos cria problemas que vão muito além da dívida climática.’

Koch não é um Buda sereno, cuja capacidade de navegar seus desejos impetuosos o qualifica para tomar decisões pelo restante de nós. Na verdade, como todos os outros, ele é uma embarcação defeituosa, cujos pontos cegos são tão persistentes quanto os nossos. Mas, ao contrário de uma pessoa cuja falta de prudência leva ao vício em drogas e aos crimes leves para sustentar seu hábito, as falhas de Koch não prejudicam apenas algumas pessoas, elas prejudicam nossa espécie inteira, e o único planeta capaz de abrigá-la.

A paciência seletiva dos ricos cria problemas que vão muito além da dívida climática. Koch e seus colegas oligarcas são, em primeiro lugar, partidários de uma oligarquia, uma estrutura política intrinsecamente desestabilizadora que, na realidade, ameaça suas fortunas. As políticas que favorecem os ricos estão sempre buscando um equilíbrio entre instabilidade e desigualdade: uma pessoa rica pode se sujeitar à tributação sobre seu dinheiro para construir hospitais, estradas e escolas, ou pode investir na construção de muros altos e pagar guardas para impedir que o restante de nós erga guilhotinas em seus gramados.

Os ricos devoram aquele marshmallow como se não houvesse amanhã (literalmente). Eles sempre superestimam quanto benefício receberão pelo custo com a mão-de-obra de guarda, e subestimam a obstinação dos pobres após verem seus filhos morrendo de fome e doenças evitáveis.

Todos nos beneficiamos de ter algum tipo de proteção contra as nossas avaliações imprecisas, mas não demais. O problema não é que os ricos podem fazer algumas escolhas ruins sem sofrerem consequências brutais: é que eles acumulam esse benefício. Para a maioria de nós, basta um pagamento em aberto de uma dívida estudantil para incorrermos em multas e juros que acrescentam vinte anos no prazo do financiamento, enquanto Charles Koch pode colocar fogo no planeta e continuar a agir como se tivesse nascido com o poder especial de discernimento que significa que ele sabe o que é melhor para nós.

(Minha mais recente coluna na Locus Magazine se chama “Longoprazismo do Marshmallow”, e é uma reflexão sobre como os conservadores se auto-mitificam como paladinos da ideia de adiar recompensas e fazer trocas difíceis, mas não têm nada dessa capacidade quando se trata das mudanças climáticas e da desigualdade.)

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