Antes tarde do que nunca. As ordens de prisão emitidas pelo Tribunal Penal Internacional contra o “primeiro-genocida” Benjamin Netanyahu e seu assistente de ordens e ex-ministro da “defesa” – ou do extermínio – Yoav Gallant não estão apenas 400 dias atrasadas.
Há mais de um século, o povo palestino espera por algo que se pareça com justiça, ou ao menos algum tipo de sinal que a dita comunidade internacional e seus sistemas jurídicos nos enxerguem como seres humanos.
Sionistas e seu empreendimento colonial, genocida, racista e supremacista de nome fantasia Israel precisaram massacrar palestinos ininterruptamente por mais de 400 dias na maior e mais indecente chacina da história contemporânea, para que uma corte internacional observasse o sofrimento do povo palestino e ousasse dizer que algo de criminoso acontece na Palestina.
Ironicamente, só mesmo um Holocausto, o palestino, para fazer o mundo voltar os olhos para este povo originário que vive, a um só tempo, a mais longa ocupação da história moderna e a crise de refugiados mais duradoura do mundo. Esse cenário acontece às vésperas de completar seus 78 anos – os mesmos 78 anos de genocídio, limpeza étnica e colonização a que são submetidos.
Netanyahu e Yoav Gallant conseguiram a proeza de se tornarem os primeiros líderes sionistas indiciados por um tribunal de justiça pelos crimes cometidos contra o povo palestino. Considerando o histórico de complacência e permissividade dada pelo mundo aos sionistas para que cometam livremente suas atrocidades na Palestina, é realmente um fato digno de nota.
E, convenhamos, fizeram por merecer tal “conquista”. Os genocidas do passado devem estar orgulhosos. Netanyahu e Gallant estabeleceram em Gaza um novo padrão de brutalidade e extermínio que a humanidade ainda há de se debruçar para compreender integralmente o que assiste há 13 meses.
78 anos de crimes sem julgamento
Porém, os crimes cometidos por Israel nesta mais recente fase do genocídio continuado do povo palestino, iniciada em 7 de outubro de 2023, não são originais ou motivados por algo diferente. São apenas a nova – e mais violenta – etapa deste projeto colonial e genocidário que, desde sua concepção, presumia e pregava o extermínio de palestinos, o apagamento de sua identidade e a tomada de suas terras.
O que distingue Netanyahu de David Ben-Gurion – este, símbolo do chamado sionismo “de esquerda” e arquiteto da Nakba, a limpeza étnica da Palestina entre 1947 e 1951? Nada. Durante a Nakba, mais de 750 mil palestinos foram expulsos de suas casas, mais de 15 mil assassinados, 531 cidades e vilarejos destruídos, e 78% da Palestina Histórica foi usurpada.
Os métodos são os mesmos: assassinar o maior número de pessoas possível, destruir tudo para inviabilizar a vida e aterrorizar os que sobreviveram na expectativa de que abandonem sua terra ancestral. Aos que permanecerem, fica o apartheid, ocupação, supremacismo e dominação.
Por mais que eu queira provar meu ponto sobre o histórico de impunidade às atrocidades cometidas contra o povo palestino, nem o leitor mais interessado ou devoto teria tempo, paciência ou, em último caso, estômago se eu ousasse listar aqui todos os crimes cometidos pelos sionistas a partir da autoproclamação de Israel, em maio de 1948.
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Até porque o crime e o objetivo é um só: exterminar e substituir a população originária, os palestinos, por uma demografia de colonos importados de qualquer canto do mundo desde que tenham disposição para tomarem parte e servirem neste culto racista e supremacista batizado “sionismo”.
Então, quero voltar ao pecado original. Afinal, um crime dessa magnitude não é passional ou se dá da noite para o dia. É premeditado. Seus detalhes, planejados à exaustão.
O que testemunhamos na Palestina há mais de 400 dias é fruto de mais de um século de lapidação deste projeto genocida até chegarmos hoje à sua atualização mais sangrenta e assassina. Netanyahu é apenas o genocida de momento, incumbido de dar cabo à solução final em curso na Palestina.
Em 1896, quando Theodor Herzl, considerado “pai do sionismo político”, escreveu seu panfleto supremacista Der Judenstaat – o Mein Kampf sionista, quase 30 anos antes de Hitler – pregando a expulsão de palestinos e o roubo da Palestina por colonos euro-judeus para construir, palavras do próprio, “um baluarte da civilização [europeia] contra a barbárie [oriental]”, já previa a limpeza étnica e o extermínio da população originária da Palestina.
Em seus diários, Herzl é ainda mais descritivo sobre o plano de varrer palestinos da Palestina: “O processo de expropriação quanto da remoção deve ser conduzido com discrição e circunspecção”. Aqui ainda estamos 127 anos antes de 7 de outubro de 2023.
À época, a visão sionista de colonizar a Palestina era minoritária entre os europeus judeus. Ciente deste fato, Herzl foi além e premeditou que “os antissemitas se tornarão nossos amigos mais leais, as nações antissemitas se tornarão nossos aliados” na viabilização do projeto colonial de Israel na Palestina, atuando coercitivamente para convencer parcelas desta demografia judaica na Europa de que deveriam deixar o Velho Continente e tomar parte no assalto genocida à Palestina.
Da mesma maneira que Netanyahu vai hoje aos Estados Unidos pedir aprovação e um cheque gordo em armas para exterminar palestinos, os dirigentes sionistas do final do século XIX e início do século XX sabiam que precisavam do apoio das potências imperiais para colocar em prática seu projeto colonial na Palestina.
O próprio Herzl – e os que o sucederam – peregrinou pelos palácios europeus em busca de um patrocinador para seu empreendimento genocidário no Oriente Médio. Para a maior potência colonial da época, o Império Britânico, que há muito esperava uma oportunidade de enfraquecer e colonizar terras do Império Otomano, a empreitada sionista na Palestina soou como música aos ouvidos.
O documento mais famoso dessa aliança perversa entre colonizadores britânicos e seus agentes terceirizados sionistas é a infame Declaração de Balfour, de 1917, em que o fanático religioso e ministro das relações exteriores britânico Arthur Balfour promete aos sionistas um “lar nacional” na Palestina – como se a terra fosse dele para prometer a alguém! – e sela o destino de extermínio, expulsão e colonização do povo palestino.
Há, porém, outro documento muito pouco conhecido e este, sim, a minuta do crime que transcorre na Palestina há mais de um século.
Em janeiro de 1915, o sionista Herbert Samuel, então secretário de interior do Império Britânico, escreve um documento chamado O Futuro da Palestina, também conhecido como Memorando de Samuel, apenas dois meses após a Coroa britânica declarar guerra contra o Império Otomano no contexto da Primeira Guerra Mundial.
O Futuro da Palestina foi apresentado à alta cúpula britânica recomendando as ações que o império deveria tomar para colonizar a Palestina e é o primeiro documento oficial a registrar a proposta de apoiar as aspirações sionistas na Palestina como medida de guerra.
No que se tornaria o manual genocida da colonização da Palestina ao longo do próximo século, Samuel começa descrevendo que, apesar de ser um “grande sonho”, ainda não era o momento oportuno para estabelecer um “Estado Judeu” autônomo na Palestina, afinal, seria impossível que a minoria judaica (menos de 10% da população) conseguisse governar a esmagadora maioria demográfica árabe (mais de 90%) àquela altura.
Netanyahu é o primeiro sionista que sentará no banco dos réus pelos seus crimes.
Samuel, então, recomenda que a Palestina fosse anexada pelo Império Britânico após a guerra (bingo!) e que, ao longo do tempo, sob comando e administração britânicos, o movimento sionista seria capaz de comprar terras (bingo!), aumentar a migração judaica (bingo!) e expandir os assentamentos judeus (bingo!), além de criar uma infraestrutura de governo, como sistema educacional e aparato militar (bingo!) para eventualmente criar uma maioria judaica no território e formar as condições necessárias para os judeus se autogovernarem num Estado independente.
Hebert Samuel, ou “nosso Samuel”, como se vangloriava Chaim Weizmann, o então presidente da Organização Sionista Mundial, se tornaria alto comissário britânico no mandato da Palestina em 1920 por indicação de Weizmann e, com a caneta na mão, estruturou o aparato colonial que possibilitou aos sionistas lançarem seu assalto genocida e tomarem a Palestina na Nakba.
A mesma burocracia de extermínio usada para massacrar palestinos em 1948, 1956, 1967, 1982, 1987, 2000, 2008, 2012, 2014, 2021 – apenas para citar alguns episódios de violência genocida – e hoje em Gaza.
Com esse breve passeio ao que seria o início de mais de um século de crimes contra o povo palestino, voltamos ao dia 21 de novembro de 2024. Netanyahu, agora o primeiro líder sionista na história a ter uma ordem de prisão expedida por crimes de guerra e contra a humanidade, não inventou nada novo ou fez algo diferente do que fizeram os demais políticos sionistas e seus sócios ocidentais em mais de 100 anos de genocídio palestino.
Ao longo da história, todos os CEOs e administradores do empreendimento genocidário e colonial vulgarmente conhecido como Israel, bem como seus comparsas das potências coloniais de momento, rezam a mesma cartilha e servem ao mesmo objetivo: o extermínio e a limpeza étnica da Palestina; o apagamento de palestinos de sua terra, de sua história e de seu futuro.
Poucos, porém, foram tão eficazes e representam tão bem a perversidade desse projeto como Netanyahu. Benjamin, o açougueiro de Gaza, é a versão acabada, lapidada ao longo de décadas, do gângster perfeito para dar cabo à solução final a este crime concebido, tramado e executado há mais de um século contra o povo palestino.
Netanyahu é apenas a mais recente atualização da tal “tradição democrática” israelense que produz um degenerado pior que outro para chamar de “primeiro-ministro” e comandar o massacre de palestinos ano após ano.
Em uma sociedade, a israelense, em que carniceiros são premiados pelas atrocidades que cometem com os mais altos cargos políticos do “país”, a ordem de prisão contra Netanyahu é histórica por seu ineditismo – o primeiro sionista que sentará no banco dos réus pelos crimes contra a Palestina e contra a humanidade.
E é simbólica porque Netanyahu é o filho prodígio desta aberração colonial, genocida e supremacista autoproclamada Israel – não por acaso é ele que dá as cartas da política israelense há três décadas.
Netanyahu não é pior que nenhum dos assassinos que o precederam – leia-se todos os líderes políticos e militares da história israelense. Talvez seja apenas o mais insolente, que declara abertamente sua intenção genocida e extermina homens, mulheres e crianças palestinas desavergonhadamente na frente das câmeras para que o mundo inteiro assista.
Mas nem mesmo essa insolência é particular a Netanyahu. Ele faz o que faz porque tem certeza da impunidade; o genocídio televisionado é fruto de mais de um século de injustiça contra o povo palestino e da condescendência do mundo com os crimes de Israel.
É hora de colocar Israel no banco dos réus.
Nós, palestinos, esperamos muito tempo para ver no banco dos réus ao menos um líder sionista responsável pelo nosso extermínio em curso há mais de um século. Não é possível voltar no tempo e punir os facínoras que conduziram o massacre do nosso povo de 1947 para cá.
Provavelmente, eles ainda continuarão dando nome a ruas, praças e logradouros, como aqui no Brasil. Mas o reconhecimento de Netanyahu como criminoso e genocida que é, agora procurado internacionalmente, é uma centelha de justiça e um sopro de esperança na batalha para fazer cessar o genocídio em Gaza e libertar a Palestina e a humanidade desta chaga chamada sionismo.
Não há paz sem justiça. É fundamental responsabilizar e punir a gangue de assassinos de crianças baseada em Tel Aviv e financiada por Washington, Berlim e Bruxelas, a maior quadrilha genocida que o mundo já viu, pela carnificina executada no Holocausto Palestino há mais de 400 dias.
Mas é preciso ir além: é hora de colocar Israel e o sionismo no banco dos réus da história pelos crimes cometidos contra o povo palestino ao longo de mais de um século. Assim, a Palestina será livre.
É tempo de justiça. E é tempo de libertação.
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