A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB, é o instrumento legal que define o funcionamento de todos os sistemas de ensino no Brasil. Seu artigo 7º afirma que o “ensino é livre à iniciativa privada”, desde que cumpra as normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino (inciso I) e que possua autorização de funcionamento e tenha a sua qualidade avaliada pelo poder público (inciso II).
Isso quer dizer que as escolas, mesmo as privadas, integram os sistemas de ensino administrados pelo estado, conforme os artigos 17 e 18 da LDB. Por conta disso, é função dos conselhos estaduais de educação fiscalizar os estabelecimentos privados de ensino fundamental e médio, avaliando a qualidade do ensino ofertado e decidindo se terão autorização de funcionamento ante a sua capacidade demonstrada de cumprir as normas gerais da educação nacional.
As escolas privadas, apesar disso, são objeto de pouca fiscalização. Isso decorre tanto do aparelhamento dos conselhos estaduais pelo setor privado quanto de um certo senso comum que desconsidera que a educação privada guarda aspectos daquilo que costumamos chamar de “bem público”.
Seja pública ou privada, uma escola é, ao mesmo tempo, espaço de qualificação, socialização e subjetivação humanas, e trabalha obrigatoriamente com o que a humanidade já produziu nos campos da ciência, da arte e da cultura.
A liberdade de escolha dos métodos e conteúdos de ensino, uma prerrogativa profissional dos professores, no entanto, não se confunde com liberdade irrestrita para propagar falsificações históricas e negacionismos científicos – os tais conteúdos “paralelos” das bolhas ideológicas de extrema direita.
Além de ensinar o preconizado nos currículos oficiais baseados na ciência validada por especialistas, os estabelecimentos de ensino devem incluir “conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher” (art. 26, § 9º). Portanto, conteúdos “alternativos” que negam os direitos humanos não têm lugar nas escolas.
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Já o ensino da História do Brasil, deve levar em conta “as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia” (art. 26, § 4º).
Isso significa que o apagamento da história e da cultura afro-brasileira e indígena com vistas a reabilitar uma narrativa colonial unívoca sobre os descobrimentos também atenta contra as normas gerais da educação básica no Brasil.
Os conteúdos curriculares da educação básica, por fim, devem difundir “valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática” (art. 27), o que nos leva a concluir que as “Escolas Paralelas” mostradas na reportagem do Intercept Brasil estão trabalhando à margem da LDB.
Os dados levantados falam em 285 escolas contempladas por um “mecenato” de difusão de conteúdos da empresa Brasil Paralelo, notória produtora de desinformação. Uma coisa é o consumo desse tipo de deturpação em casa; outra é isso ser feito em estabelecimentos de educação formais, cuja função deveria ser precisamente combater o relativismo que trata ciência e mistificação como meras “narrativas”.
Em meio a tantas investidas reacionárias contra a escola pública, que concentra 80% das matrículas no Brasil – leis da mordaça, ataques à ciência, militarização escolar, violações da laicidade –, as escolas privadas costumam passar despercebidas do debate público. Elas são tratadas como ilhas onde filhos e filhas das classes médias pagam um ingresso mensal para conviver com seus iguais, mas ilhas não fiscalizadas no trabalho pedagógico que realizam, o que naturaliza a ideia – falsa – de que a escola privada poderia ensinar só aquilo que interessa às famílias pagantes.
É essa mesma ideia falsa sobre o direito à educação, que independe da vontade das famílias, que move os movimentos por homeschooling, as tentativas do agro de fiscalizar o conteúdo dos livros didáticos, as agressões contra docentes que tratam de questões de gênero e sexualidade etc.
Em suma, tentativas de impor valores privados sobre o espaço de circulação de conhecimentos, mesmo em uma escola privada, que constituem nosso patrimônio coletivo.
Se uma escola privada envereda pelo charlatanismo pedagógico e o estado nada faz, ele torna-se corresponsável pela destruição da escola como espaço de fruição da educação como bem público. Que os conselhos estaduais de educação comecem a trabalhar para garantir o direito à educação também a estudantes pagantes de mensalidades escolares no país.
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