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Por que machucamos quem deveríamos acolher?

Instituições, justiça e a própria sociedade, nas redes sociais, impõem novas ofensas e violências a vítimas de crimes sexuais.

Por que machucamos quem deveríamos acolher?

Foto: Wesley Tingey (@wesleyphotography) via Unsplash

Quando escuto a palavra revitimização, imediatamente me lembro de Severina, sobre quem já escrevi aqui. Estuprada durante anos pelo próprio pai, grávida do mesmo 12 vezes, cinco filhos nascidos, ela procurou mais de uma vez a segurança pública para se defender. Em uma delegacia, levou no rosto um tapa de um delegado, que não gostou de ver uma filha denunciando o pai. 

O sistema de saúde também foi violento com a ex-agricultora: seus partos aconteceram em maternidades públicas de Caruaru, Pernambuco. Em nenhum momento, nas consultas e logo após os nascimentos das crianças, médicas/os ou enfermeiras/os puxaram o fio da paternidade e denunciaram o agressor. Não seria difícil: na área rural, toda a vizinhança sabia que ela era obrigada a deitar com o homem que a fez ser mãe dos irmãos. Mas o silêncio imperava.

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O caso terrível de Severina nos mostra como a revitimização é tentacular: ela se dá entre as estruturas institucionais, se dá no “lá fora”, no cotidiano. Pode ser operada por juízes, médicos, por seu até simpático vizinho. Com especial toxicidade, se propaga nas redes sociais.

Um advogado, um dos vários homens que denunciou no Intercept Brasil, o professor de direito da USP Alysson Mascaro, não conseguiu, ainda, formalizar a denúncia de estupro por uma razão: receio de não encontrar apoio na justiça. 

“Após o abuso, fui tomado por diversos sentimentos, principalmente o medo. Medo de não ser ouvido e amparado de forma justa e imparcial pela administração do Largo São Francisco, pela polícia, pelo Ministério Público e pelo sistema judiciário”, diz.

O poder e a influência de Alysson, além de uma ampla rede de contatos, assustam aqueles que alegam terem sido molestados pelo docente, segundo o advogado. Foi só depois da reportagem do Intercept que a USP abriu um procedimento preliminar para averiguar as denúncias.

“Também temo pela impunidade do professor e pela legitimação de seus atos pelo próprio sistema de justiça. Não por falta de provas, mas por saber que esse ambiente, muitas vezes, beneficia os ricos, poderosos e bem relacionados. Além disso, sempre que pensava em denunciar, surgiam barreiras: o custo emocional e financeiro do processo, o risco de retaliação judicial e o impacto negativo em minha carreira”.

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É verdade que temos duas leis que, em tese, coíbem agentes públicos e terceiros de constranger pessoas que procuram instituições em busca de reparação, tratamentos, socorro. A primeira é a Lei 14.321, que tipifica o crime de violência institucional (submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade). 

A segunda é a Lei nº 14.245, conhecida como Lei Mariana Ferrer. Ela é criada para “coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo”.

Principal ponto da revitimização, o sistema judicial reproduz as violências que na lei deveriam ser tratadas ou prevenidas ou punidas.

A criação da segunda legislação nasceu, vale lembrar, após a publicação de uma reportagem do Intercept em novembro de 2020. O Intercept divulgou imagens da audiência de instrução e julgamento realizada em 27 de julho de 2020 na 3ª Vara Criminal da Comarca de Florianópolis. 

A reunião tratava do processo criminal envolvendo o empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a modelo catarinense Mariana Ferrer. Na audiência, Mariana foi várias vezes ofendida e humilhada pelo advogado de defesa do acusado, Cláudio Gastão da Rosa Filho, que chamou de “ginecológicas” algumas fotografias da modelo postadas nas redes sociais. Gastão da Rosa Filho acabou absolvido pela justiça.

Mas se é verdade que temos leis que, ao menos no ambiente institucional, podem enquadrar como criminoso quem se sente à vontade de ferir quem já foi ferido, é igualmente realidade o efeito ainda pouco tangível dessas legislações. 

Para o advogado que relatou ter sido abusado por Alysson Mascaro, a Lei nº 14.321 representa um passo inicial na proteção de vítimas em procedimentos administrativos, policiais e judiciais, mas enfrenta limitações. 

“Destaco duas: a primeira diz respeito ao fato de que a punição prevista na lei de violência institucional recai exclusivamente sobre o agente que submete a vítima ou testemunha a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, sem penalizar a instituição pela conduta do agente, nem estabelecer mecanismos para melhorar a segurança e o amparo das vítimas. Já a segunda diz respeito à redação da norma, que contém, em seu cerne, termos indeterminados para a caracterização do crime, tais como ‘procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos’, cuja interpretação depende da subjetividade dos julgadores”, ele me disse. 

Para evitar revitimizações e fortalecer a proteção das vítimas, diz o advogado, seria essencial debater a criação de leis específicas que organizem procedimentos nos âmbitos administrativos, policiais e judiciais. Elas precisam ainda garantir maior segurança, especialmente para vítimas de violência sexual, frequentemente em desvantagem de poder em relação a seus agressores – principalmente quando eles são pessoas de grande poder e/ou influência (como vimos no caso de Mariana Ferrer, como vemos agora no caso de Alysson Mascaro).

No artigo “A vedação à violência institucional e à revitimização no curso do processo: comentários à Lei n.14.245/2021 (Lei Mariana Ferrer)”, o juiz Heitor de Oliveira escreve que, durante a instrução probatória judicial, por exemplo, não raramente “são formuladas às vítimas e testemunhas perguntas repetitivas, inadequadas, desnecessárias, provocativas, degradantes, humilhantes, ofensivas, vexatórias e invasivas, que têm o potencial efeito de aviltá-las, menosprezá-las e depreciá-las enquanto pessoa portadora de dignidade”. 

Oliveira chama atenção para o que entende como uma subespécie da violência institucional: a violência processual, praticada por agente público no desempenho de função pública no curso de processo judicial.

No sistema de saúde, o lugar de acolhimento é lugar de violência

A revitimização presente justamente em locais que teoricamente deveriam proteger quem está em situação de vulnerabilidade é, de fato, uma constante. Diagnosticado há seis anos com HIV, o assessor de projetos especiais da ONG Gestos, Thiago Jerohan, enfrentou constrangimentos e violências no sistema de saúde que deveria acolhê-lo.

“O motivo de manter por muito tempo o diagnóstico em sigilo, o que a lei permite, era justamente para evitar discriminação. Mas, em um serviço especializado de HIV, um médico que ouviu a minha história, todo meu processo, disse que eu queria me infectar. O lugar que tinha função constitucional de me acolher na verdade foi o lugar que me violentou”.

Para Jerohan, que não tem qualquer relação com o caso de Alysson Mascaro, muitas leis sobre violências são antes de tudo simbólicas. “Mesmo sendo muito específicas, com muitos detalhes, elas não se põem em prática. Principal ponto da revitimização, o sistema judicial reproduz as violências que na lei deveriam ser tratadas ou prevenidas ou punidas. Leis contra o racismo e a LGBTfobia, por exemplo, são ignoradas por quem deveria fazê-las cumprir”.

Advogada da Gestos, que auxilia pessoas vivendo com HIV e AIDS principalmente na obtenção de benefícios previdenciários e assistenciais, Kariana Gueiros diz que outra forma ativa para combater a revitimização são denúncias nos conselhos de saúde, ouvidorias, Ministério Público e Defensoria Pública. 

Apesar das comuns dificuldades na justiça, entrar com ações civis públicas e/ou ações individuais, além de denúncias às instâncias internacionais, podem ajudar a esmorecer o paredão. 

Desde 1998 atuando na organização não governamental, a advogada diz que o público adoecido tem dificuldade de se inserir no mercado de trabalho e por isso recorre frequentemente ao INSS. Nesta instituição, principalmente após 2015, tais auxílios são frequentemente negados indevidamente. 

“Temos acesso a muitos relatos de que os peritos do INSS nem olham para o rosto das pessoas, muito menos conversam com as mesmas, só conferem os documentos levados e mandam aguardar. Ou ainda de peritos que fazem julgamentos, que tratam as pessoas como se elas estivessem ali querendo apenas burlar a lei e tirar dinheiro do governo indevidamente. Ou seja, para as pessoas que precisam realizar perícia junto ao INSS não é um processo fácil, porque muitas vezes, além de estarem doentes, elas ainda são humilhadas”.

É justamente quando entram na justiça para garantir o direito ao acesso à previdência ou assistência social (previstos no artigo 6º da Constituição Federal) que a revitimização já experimentada no INSS se propaga. As avaliações realizadas por peritos ou peritas generalistas é um dos obstáculos, uma vez que requerentes vivendo com HIV ou AIDS precisariam de um expert em problemas de saúde. Os resultados: novamente o bloqueio ao direito constitucional.

“Portanto, mesmo a pessoa tendo vários laudos médicos, resultados de exames, o juiz só vai observar o laudo do perito médico, mantendo a decisão de não conceder benefício àquela pessoa que continua sem acessar os seus direitos mais básicos e adoecendo do ponto de vista físico e mental. As pessoas continuam sofrendo revitimização, e a lei voltada para este tipo de situação não traz amparo”.

A vítima no tribunal das redes sociais 

Se em instituições da saúde, justiça e previdência são comuns os processos de ferir novamente o ferido, nas redes sociais a questão ganha outro tom: também são comuns os processos de revitimização, porém neste caso muito mais públicos e coletivos. 

“A violência sexual está relacionada à desproporcionalidade de poder entre agressor e vítima, e não necessariamente à força física”

O advogado que denunciou o professor Alysson Mascaro conta que ele e outros denunciantes receberam muitos apoios nas redes (e ainda novos relatos de assédio, mais de 40 deles enviados ao Intercept). Mas, ao mesmo tempo, estão sendo revitimizados não somente por comentários na internet, mas ainda a partir de jornais do próprio campo progressista do qual fazem parte. 

“Nos culpam pelo abuso, nos tratam como criminosos e fazem até mesmo piadas sobre nossa situação. Para essas pessoas, pergunto: se o seu filho, seu neto, seu pai ou seu amigo, relatasse um abuso, vocês fariam o mesmo? Ririam? O culpariam apenas porque o agressor é um renomado pensador da esquerda?”.

Nas redes, as acusações contra os denunciantes são variadas: há os que afirmam que o grupo busca algum benefício com a denúncia. “Alguns chegaram ao absurdo de nos taxar como membros da extrema-direita ou agentes do imperialismo norte-americano. Outros nos classificaram como ‘vítimas impossíveis’, por sermos homens adultos, alegando que homens, por sua força física, não poderiam ser vítimas de violência sexual. Esses comentários ignoram que a violência sexual está relacionada à desproporcionalidade de poder entre agressor e vítima, e não necessariamente à força física”.

A questão do gênero é notória aqui: uma vez que as mulheres são as maiores vítimas de crimes sexuais, convencionou-se que os homens não poderiam ocupar o mesmo lugar, uma percepção que tem mais relação com um tipo de masculinidade hegemônica do que com a realidade. 

“Eu acredito que nossos relatos e o de tantos outros que apareceram posteriormente possam abrir espaço para que se inicie um debate na sociedade quanto aos abusos sofridos por homens. Urge demolir o mito de que o homem é um ser inviolável, sem medos, sem angústias e que seria impossível um homem ser abusado por outro homem, esse mito é permeado por uma visão machista e extremamente perigosa. Ela contribui para uma cultura de autocensura dos homens em relação aos episódios de abusos que podem sofrer durante a vida”. 

Um outro ganho, acredita o denunciante, pode ser o fortalecimento de denúncias – nas redes sociais digitais ou não – sobre crimes sexuais cometidos em ambientes acadêmicos. 

“Todo curso de graduação tem predadores conhecidos, com nomes e sobrenomes, tem vítimas conhecidas, no entanto, o silêncio e o acobertamento de casos assim pelas administrações das instituições seguem firmes e fortes. O corporativismo entre os membros da administração e os professores permanecem sendo a tônica utilizada para prosseguir e, de modo repentino, arquivar procedimentos na esfera administrativa, a fim de blindar não apenas os professores, mas também a própria instituição e seu prestígio”.

As redes digitais vêm sendo objeto de diversas pesquisas que tratam da revitimização, com grupos muito vulneráveis como menores de idade surgindo em diversas delas.

No artigo “A revitimização de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual nas mídias sociais”, de Francesca Rosa dos Santos, foram observadas crianças e/ou adolescente vítimas de crime contra a dignidade sexual cujas histórias foram expostas pela mídia. Uma vez publicizados, esses relatos ganham ressonância coletiva, com as crianças e jovens sendo muitas vezes culpabilizados pela violência sofrida. 

O estudo aponta para algo urgente e que tem relação com o estado da arte da lei contra revitimização: mesmo com o ordenamento jurídico brasileiro prevendo diversos dispositivos destinados à proteção das crianças e adolescentes, é necessário que cada rede social crie também seus mecanismos para garantir que estes grupos não estejam tão expostos.

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