O ano começou com uma vitória que lavou a alma de todos os brasileiros: Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama por “Ainda Estou Aqui”. E, agora, o filme também fez história ao ser indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz. O longa dirigido por Walter Salles expõe a necessidade da memória e do acerto de contas com o passado sombrio da ditadura brasileira.
O feito inédito para o país chega em uma premiação descrita como um dos termômetros mais importantes para as indicações ao Oscar, apelidado pela mídia e indústria mainstream como a maior honraria do cinema mundial.
Apesar da euforia mais do que justificada, o longa não recebeu nenhum apoio das políticas públicas destinadas ao audiovisual local. Mesmo durante sua longa campanha até o Oscar, essa ausência de suporte persistiu. A indústria brasileira desconhece por completo o investimento em campanhas de premiações, permitindo que apenas a alta classe cinematográfica conquiste tais honrarias.
No entanto, a figura de Fernanda Torres, além de central para a narrativa do filme, também nos aproxima de uma atriz humilde e com uma consciência social enorme, embora faça brincadeiras com o fato de ser uma nepobaby, isto é, filha de uma atriz e um ator de sucesso.
Durante seus discursos de agradecimento pelo prêmio, Torres não deixou de citar todo o setor audiovisual brasileiro ao se dizer esperançosa que a vida longa da obra de Salles possa estimular a produção de tantos outros projetos. E conseguiu chamar a atenção do Ministério da Cultura para se posicionar sobre um grande elefante branco do setor: a tão massacrada regulamentação do streaming.
Em artigo divulgado no dia 12 de janeiro, a ministra da Cultura Margareth Menezes parabeniza Fernanda pelo seu feito e aproveita para anunciar números positivos nas salas de cinema para o cinema brasileiro, sem deixar de apontar, pela primeira vez, uma defesa pública e consistente da regulamentação do streaming e a necessidade da tributação das empresas e preservação dos direitos autorais e patrimoniais das obras a serem produzidas em parceria.
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Sendo uma pauta do setor desde 2017, quando a União Europeia ainda reunia estudos para aplicar a hoje referenciada–- e modelo para o Brasil – a regulamentação do streaming era a grande esperança para o audiovisual brasileiro durante o governo Lula três, mas a falta de defesa clara por meio do MinC já havia nos deixado inquietos.
Diferente do que habita no imaginário popular já muito desgastado pelas fake news produzidas pela extrema direita brasileira, a regulamentação do streaming não afeta os valores das mensalidades dos serviços. Isso porque, quando falamos em tributo, estamos falando da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, a Condecine, uma contribuição social devida somente por empresas que possuem negócios no audiovisual brasileiro.
Este tributo corresponde a, pelo menos, 90% da verba que circula dentro do Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA, o principal fundo de fomento para a atividade no Brasil. Isso significa que, embora seja um incentivo público, a dinâmica orçamentária aplicada é retroalimentar: o setor investe em si próprio.
Apesar dos problemas atuais causados pós-golpe de Dilma Rousseff, como a posse e posterior afastamento por crimes contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro e favorecimento indevido de empresas, do diretor da Ancine Christian Castro, o FSA é um modelo já muito utilizado por outros países que possuem uma indústria de base incentivada, como os principais mercados europeus de cinema. A França é seu maior exemplo. E o streaming precisa fazer parte desta equação.
No terceiro trimestre de 2024, somente a Netflix registrou um lucro de US$ 2,15 bilhões na esfera global. No Brasil, ainda em 2020, a gigante do streaming já havia colocado R$ 6,7 bilhões no bolso.
Entretanto, produções brasileiras não chegam nem a 10% do catálogo geral das plataformas e estes conglomerados acumulam denúncias trabalhistas que dão conta de provar que roteiristas recebem pouco mais do que um salário mínimo em uma dinâmica de carga horária exaustiva que muitas vezes excede 12 horas diárias, e sem preservação dos seus direitos autorais.
No contraste mais gritante está a União Europeia, que exige 30% de espaço no catálogo para obras advindas dos seus países-membros – todo aquele catálogo rico de obras espanholas tem razão de existir – e registra retornos para os países acima de 1 bilhão de euros, como é o exemplo da França e da própria Espanha.
Em um cenário de forte pressão pelo ajuste das contas públicas, a indústria cinematográfica surge como uma alternativa para evitar a desindustrialização. O setor emprega mais de 800 mil pessoas e gera uma arrecadação tributária significativa. Além de impulsionar a economia com a geração de renda, o cinema também exerce um impacto positivo em áreas como alimentação, turismo, transporte e no trabalho informal.
Os aplausos podem e devem ser estendidos para além de ‘Ainda Estou Aqui’. Com mais de R$ 27 bilhões aplicados diretamente ao PIB, o audiovisual brasileiro quer trabalhar e gerar renda para o país. E para isso é preciso que seja protegido e incentivado sem acharmos que estamos reinventando a roda.
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