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ENTREVISTA: Retorno de Trump ao poder inaugura ‘era de criptocaos’ 

Por pragmatismo e ideologia, mundo cripto se uniu aos oligarcas do Vale do Silício na campanha trumpista apostando na desregulação.

ENTREVISTA: Retorno de Trump ao poder inaugura ‘era de criptocaos’ 

O retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos pode inaugurar uma ‘era de criptocaos’, marcada por alta especulação e desregulação de um setor que já é pouco regulado. A observação é de Edemilson Paraná, professor de Economia Política no Departamento de Ciências Sociais da LUT University, na Finlândia, e autor do livro Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico (Autonomia Literária, 2020). 

Ao longo da campanha que o levou de volta à Casa Branca, Trump se aproximou do setor de criptomoedas, a quem ele antes havia criticado. Os acenos incluíram participações em conferências do cripto, com promessas de que os EUA passariam a deter uma reserva financeira em bitcoin, além de sinalizações de que ele retiraria de cargos regulatórios figuras que haviam adotado uma abordagem agressiva contra o setor. Trump se declarou como o primeiro presidente pró-cripto dos Estados Unidos. 

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Poucos dias antes de tomar posse, Trump e sua esposa Melania lançaram suas próprias memecoins, criptomoedas criadas com fundo de piada. No mesmo dia em que foi lançada, a moeda de Trump disparou a US$75, mas já perdeu valor desde então. O lançamento das moedas de Trump e Melania foi recebido de forma mista pela comunidade cripto, com alguns acusando o presidente de ‘fazer piada com a indústria’. 

Os acenos não foram gratuitos: a campanha de Trump recebeu US$ 7,5 milhões em doações em criptomoedas. Depois de eleito, as principais empresas do setor doaram US$ 10 milhões para a posse do presidente. 

Em suas primeiras nomeações, Trump trouxe o nome de figuras simpáticas à indústria cripto para posições-chave. As nomeações já estão dando frutos: o diretor-interino da Securities and Exchange Commission, a SEC, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários, anunciou a criação de uma força-tarefa para desenvolver uma estrutura regulatória para criptomoedas. Na visão de Paraná, se trata exatamente do oposto. “O que eles estão chamando de regulação amigável, na verdade é, em grande medida, abrir a porteira, dar sinal verde para novas bolhas especulativas da indústria cripto”, disse em entrevista ao Intercept Brasil.

Além do evidente conflito de interesse com a sua memecoin, Trump deve inaugurar era de desregulamentação e especulação, diz Paraná. Foto: divulgação.

Segundo Paraná, a aproximação tem uma base pragmática, pautada por uma esperança de que Trump execute as promessas de desregulação, mas também um alinhamento ideológico entre o mundo cripto e a extrema direita. Alinhamento este que tem reflexos no Brasil e na extrema direita brasileira que tem Trump como norte. 

Para o professor, a desregulamentação da indústria cripto e a chegada desse setor ao centro de poder mundial beneficiam claramente uma elite dos bilionários globais, de oligarcas e autocratas. “A despeito da retórica de que o bitcoin e as criptomoedas vieram para empoderar o pequeno investidor, o pequeno empreendedor, o indivíduo diante dessa máquina monstruosa de regulação, controle e tirania que seria o estado, é absolutamente o oposto.”

Leia a entrevista na íntegra: 

Intercept Brasil – Quais são as implicações políticas desse aceno de Trump ao mundo cripto?

Edemilson Paraná — Trump tem se mostrado como uma figura política do ponto de vista do oportunismo mais inteligente do que se imaginou inicialmente. Ele tem feito vários movimentos, um outro exemplo recente é o caso do TikTok. Ele também foi um dos primeiros a construir essa campanha anti TikTok nos Estados Unidos, e agora posa de amigo, de salvador da pátria que está construindo um acordo que está liberando o TikTok, contra esses reguladores democratas que querem controlar o seu direito à liberdade de expressão, fazendo um aceno para o público jovem. E fazendo um aceno geopolítico para as articulações e para as mesas de negociação com atores globais e no mundo cripto não é diferente.

O Trump foi fortemente apoiado por esse setor. Há, para além de um interesse pragmático de ocasião de ambos os lados, também um alinhamento que se apresentou e se construiu ao longo dos últimos anos como um alinhamento ideológico. Você tem grandes nomes da indústria de tecnologia dos EUA como Peter Thiel [um empresário e investidor do Vale do Silício e capitalista de risco] e outros que são fervorosos defensores e entusiastas das criptomoedas e que estiveram desde o início ao lado do Trump na campanha, construindo os apoios e todas as iniciativas para fazer com que a campanha dele de fato decolasse e se viabilizasse e fosse bem-sucedida como foi.

É preciso olhar essa situação desses dois pontos de vista. De um lado está o alinhamento pragmático. No caso do Trump, ele é muito claro porque esse é um setor que está se tornando cada vez mais mainstream do ponto de vista econômico e no mundo das finanças. 

Cada vez mais o mundo financeiro incorpora as criptos em distintos instrumentos, ativos e formas das mais diversas. Isso gerou dentro do último governo uma iniciativa regulatória de muita cautela, acompanhamento e supervisão e, em alguns casos, até de oposição ao setor cripto que, por sua vez, reagiu e vem reagindo ativamente contra essas regulações e encontrou no Trump um aliado. Uma agenda de desregulação, de liberalização e, mais do que isso, de incentivo ao setor das criptomoedas e dos cripto ativos.

E como virá esse incentivo?

Esse incentivo vai se expressar em políticas amigáveis para data centers, para mining farms, para aquisição de produtos, isenção de impostos e, claro, retirar medidas contrárias que foram avançadas no governo anterior e um processo amplo de desregulamentação do setor, que é o que o setor quer. E o Trump lucrou enormemente com essa relação.

Você tem ali no mundo cripto, e eu estou simplificando porque eles se misturam, é um pouco mais complexo, mas você tem basicamente dois tipos ideais de pessoas envolvidas no mundo cripto. O pessoal mais propriamente das finanças, que está ali vendendo ou comprando, lucrando, de uma maneira mais pragmática. E os entusiastas, os evangelistas, que é uma turma mais ideológica. E claro, essas pessoas se misturam e o Trump está falando para as duas, tanto para aqueles que negociam criptoativos e estão interessados em ativar esse setor e para aqueles que são defensores ideológicos de uma agenda de criptomoedas e têm uma alta carga ideológica anti-estado, anti-regulação, anti-política econômica em sentido amplo.

‘As criptomoedas vieram para ficar. Elas cumprem papéis que são necessários para vários atores na economia global financeirizada, hiper conectada.

Essa forte carga ideológica se alinhou às ideias que o Trump apresentou na primeira e sobretudo agora na segunda campanha, onde esse alinhamento aparece de maneira ainda mais assertiva. Então esse movimento do Trump é conveniente por esses dois ângulos. No âmbito político-ideológico, isso mobilizou também o público jovem. É importante dizer que o Trump mais de uma vez mencionou o filho dele como uma figura importante nessa relação, quando na verdade todos os grandes doadores e apoiadores de campanha que tiveram tanto ideologicamente quanto pragmaticamente por trás, ele fez esse movimento de dizer: isso é uma forma de eu me relacionar também com os jovens, de puxar essa parcela jovem do eleitorado que tendia mais ao partido democrata e à Kamala Harris. E fez isso também com o TikTok. 

Como esse alinhamento do mundo cripto se relaciona ao alinhamento mais amplo da indústria tecnológica do Vale do Silício?

Esse movimento é mais um do Trump que joga em cima da imprevisibilidade, do caos, para avançar com a agenda de poder dele. E claro, um setor que está todo alinhado hoje com Trump como o setor de tecnologia em grande medida se alinhou. Na verdade, o setor cripto está alinhado desde muito antes. A indústria cripto está desde o primeiro dia de campanha, é algo que tem muita organicidade entre o eleitorado do Trump e aquelas pessoas que são entusiastas de criptomoedas. 

Não só nos EUA como também em outros lugares do mundo, como no Brasil, você percebe muito claramente uma tendência pró-forças de extrema direita no Brasil de quem está envolvido com o mundo cripto. É evidente que não dá para generalizar, há todo tipo de gente, mas se há algum tipo de tendência ideológica destas pessoas, ele tende largamente, majoritariamente, não só para a direita, mas eu diria para a extrema direita. Uma versão radicalizada, anarcocapitalista da compreensão da relação entre a moeda e o estado e sociedade, algo que eu venho explorando nos meus trabalhos.

No Brasil a gente tem visto essa convergência ideológica do mundo cripto não só na agenda econômica, mas também em outras pautas da extrema direita, como a pauta anti vacina. Como você espera que essa aproximação do Trump com o setor refletirá no Brasil?

Os reflexos são inegáveis. Primeiro porque todos os olhos vão estar voltados para o Trump e os EUA, e eu estou falando especificamente da agenda cripto mas não só. Mas se detendo a ela, o Trump tem dito desde a campanha, bem ao estilo histriônico dele, que os Estados Unidos vai se tornar a capital cripto do mundo, que ele vai ser um cripto presidente, que os EUA vão ser uma superpotência cripto. Esse tipo de declaração deixou a indústria extremamente entusiasmada, quando o Trump foi eleito, o preço do bitcoin disparou a nível recorde, a US$ 109 mil por bitcoin. 

Então o impacto é imediato, não só na expectativa de que vai haver uma agenda de desregulamentação que já começa a dar sinais claros de implementação, com Trump nomeando pessoas simpáticas à indústria cripto em posições chave, incluindo o diretor da Securities Exchange Comission, a SEC, que seria equivalente à CVM brasileira, que já anunciou que está lançando uma força-tarefa para avançar medidas para o setor especificamente relacionadas à regulação que nesse caso é desregulamentação. 

Fundamentalmente, o que eles estão chamando de regulação amigável, na verdade é, em grande medida, abrir a porteira, dar sinal verde para novas bolhas especulativas da indústria cripto. É isso que está em jogo. É um furor especulativo em torno desses ativos que são, por definição, mercadorias, ativos, que são comprados e vendidos fundamentalmente por conta da sua alta volatilidade, portanto extremamente especulativos.

Isso agrada, de novo, um conjunto de atores que apoiou politicamente o Trump, mas se vincula diretamente à elite econômica e à tecno-oligarquia americana contemporânea. Esses caras estão todos investidos em cripto, especulam com cripto, estão envolvidos neste universo, então isso evidentemente tem implicações muito concretas. 

O rebatimento no Brasil é automático, imediato. A grande referência da extrema direita mundial, não só aqui, como em outros lugares, é os Estados Unidos e o Trump. E são esses atores da indústria tecnológica estadunidense, do cripto, que é ainda mais radical. O Peter Thiel, novamente, como alguém que é muito claro ideologicamente no seu alinhamento ao projeto de extrema direita, agora o Elon Musk, e outros que estão envolvidos com o mundo cripto desde o início.

E no Brasil não é diferente, os paralelos são muito claros. O mercado financeiro nos EUA evidentemente tem um alcance global muito maior em tamanho, com impacto mais significativo, mas se você compara Wall Street com a Faria Lima e os bitcoiners americanos com os bitcoiners brasileiros, você tem uma analogia bastante próxima, também do Trump e seus apoiadores com Bolsonaro e seus apoiadores. Esse processo de espelhamento é absolutamente previsível, já aconteceu antes e vai ser reforçado agora, sem dúvida alguma, incentivado por essas medidas que o governo Trump pode adotar.  

Com a ausência dos EUA nesse esforço regulatório, devemos ver uma reação de outros países ou é algo que pode ficar solto? 

Eu acho que outros países vão se movimentar na direção de supervisionar, de regular, de controlar esse mercado porque [eles] têm a consciência, a sanidade de entender que de fato isso é perigoso em muitos aspectos para a saúde econômica  de qualquer país. E não é diferente para os Estados Unidos, é evidente que a margem de manobra dos EUA é muito maior do que de outros países, mas mesmo para eles isso pode gerar problemas significativos. A questão é saber qual vai ser o potencial de contaminação dessa ciranda especulativa, de alta volatilidade, de novas bolhas cripto, incentivadas por uma Casa Branca favorável, amigável a esse setor em muitos níveis e apoiadas por uma indústria de tecnologia que também vai se conectar nessa direção. 

As criptomoedas, e eu já disse isso em outras oportunidades, vieram para ficar, elas não vão sumir. Elas cumprem papéis que são necessários para vários atores na economia global financeirizada, hiper conectada, contemporânea. E quando eu digo necessários, eu não digo necessariamente desejáveis, mas que as pessoas buscam e que há uma demanda. Ocultação de riquezas, evasão fiscal, até atividades duvidosas para não dizer ilegais ou criminosas. As pessoas buscam algo como bitcoin para realizar esse tipo de coisa, movimentos na margem da lei, entre o legal e o ilegal. 

Então o bitcoin é uma arma na mão dos bilionários globais, não apenas deles, mas fundamentalmente  na mão dos bilionários globais. A despeito da retórica de que o bitcoin e as criptomoedas vieram para empoderar o pequeno investidor, o pequeno empreendedor, o indivíduo diante dessa máquina monstruosa de regulação, controle e tirania que seria o estado, é absolutamente o oposto. 

‘A filosofia e a ideia do neoliberalismo extremado avançado, hiper individualizado, tipo a boia de salvação, é a aposta’./

As criptomoedas são um instrumento a favor dos multibilionários globais, das oligarquias russa e americana, dos oligarcas corruptos, dos autocratas. É evidente que podem servir residualmente, como serviram em outros momentos, para pessoas que estão lutando por ideais de liberdade.

Vários países têm consciência desse processo. Um exemplo é a China, mas Europa também, que acompanha com muito cuidado, através de todas autoridades europeias em distintos níveis, proteção ao consumidor,autoridades monetárias. O BIS [Bank for International Settlements], o banco central dos bancos centrais, já há muitos anos vem fazendo observações e emitindo alertas sobre os problemas que isso pode gerar. Então no caso dos Estados Unidos, o que a gente pode esperar é uma era de criptocaos, por assim dizer, que pode se abrir com essa ciranda especulativa e desregulatória que está vindo à baila da chegada do Trump ao poder. Como esse criptocaos vai ser manejado pela Casa Branca ainda é uma questão imprevisível. 

O Trump recentemente lançou uma memecoin e em seguida a primeira-dama Melania Trump lançou a dela. Um grupo mais pragmático do mundo cripto não gostou dessa medida porque mostraria uma falta de seriedade, é uma ação que abriria margem para alegações de corrupção. O que esse anúncio e a reação significam?

O Trump posa de maluco, mas essa é uma estratégia dele para fazer com que ele alcance os seus objetivos. Ele está fazendo isso há muitos anos, desde suas atividades empresariais, envolvido em esquemas, enganações, calotes, vendendo essa personalidade exótica, imprevisível, caótica, para se safar de seus crimes e garantir que seus interesses e sua agenda de poder sigam avançando. 

E essa é a estratégia que ele já está implementando novamente tanto na política interna quanto geopoliticamente. Na verdade as pessoas têm medo da imprevisibilidade do Trump, fica todo mundo tenso porque ele joga com essa ideia de que pode fazer qualquer coisa, que não tem compromisso com nenhuma agenda, pode dar um 180 graus.

No caso da indústria cripto, o que aconteceu agora foram duas decepções. A primeira delas, e possivelmente a mais importante, é que a indústria não foi sequer mencionada no discurso de posse, as pessoas esperavam que ele fosse usar as criptomoedas como alguma das medidas bombásticas para a nova economia. Além dele não ter mencionado no discurso, isso não foi objeto de nenhuma das suas ordens executivas que acompanharam seu discurso dentre tantas ordens bastante polêmicas. 

Isso gerou um ressentimento inicial, tipo ‘nós fomos apoiadores tão fervorosos’, fizeram uma festa enorme, um baile cripto, levaram Snoop Dog para cantar, mas o Trump não deu muita confiança. Porque uma coisa é fazer campanha, outra é ser presidente dos Estados Unidos lidando com grandes bancos globais, com os maiores fundos de investimento do planeta, com Wall Street, não é tão simples. 

A segunda decepção é o lançamento dessa memecoin do Trump e da Melania que, poxa, é um escândalo sob todos os pontos de vista na lógica de conflito de interesse. É muito exemplar da maneira como essas criptomoedas, até mesmo as mais sérias do que essa, são usadas. São usadas para essa sorte de triangulação financeira entre diferentes atores que por qualquer razão não podem ou não querem passar pelas instituições financeiras tradicionais que são muito mais reguladas e supervisionadas a despeito de gozarem também de muita liberdade.

Quando ele lança a memecoin, ele faz uma piada como Musk fez com a dogecoin, ganha muito dinheiro, porque na verdade essa memecoin é controlada por uma empresa subsidiária do grupo dele, com outra empresa cuja origem não é muito bem conhecida que seria a parceira nesse negócio. 

É uma forma de receber uma injeção de dinheiro rápida, pouco ou nada supervisionada porque,  se as criptos são desreguladas, o mundo das memecoins é ainda mais. Há uma estimativa de que 40 a 50 mil memecoins são criadas todos os dias, e a supervisão desse processo é baixa, quase nula. E isso é o presidente dos Estados Unidos num flagrante conflito de interesse porque ele é o direto beneficiário econômico de medidas que ele vai tomar como mandatário político. Então, na medida que ele se envolve nesse setor, isso cria um conflito de interesse seríssimo para não falar de tantos outros. 

E a decepção vem daí também.

Claro, você tem pessoas que ficaram muito felizes, outras que ficaram descontentes e aquelas que estão buscando justamente essa integração cada vez maior das criptos dentro das finanças, vamos dizer, hegemônicas. Pensaram que isso abrirá a possibilidade para que reguladores, órgãos de supervisão, venham mais uma vez, ou até que na opinião pública as pessoas argumentem que isso é um cassino especulativo que não pode ser levado a sério. O que, no limite, não deixa de ser verdade. 

Tem uma contradição muito interessante no mundo cripto desde o surgimento que é: eles dizem que se há mais regulação, eles argumentam que é porque o setor está se tornando mais importante, que está se tornando mainstream. Mas é o mesmo setor que fala que existe fundamentalmente para destruir o dinheiro estatal e a regulação estatal da economia no âmbito da moeda e das finanças. Então a agenda e a retórica são puramente por conveniência. 

Se uma medida é adotada eu uso uma retórica, se os ventos mudam de direção, uso outra. O que essas pessoas fundamentalmente buscam é ficar muito ricas com especulação, e aqueles que têm uma agenda política de extrema direita [buscam] implantar uma espécie de caos, de desorganização econômica e de empoderamento de uma oligarquia que beneficia esses interesses ideológicos.

E no Brasil não é diferente. É um mundo dos incels, dos hiper-radicalizados, dos filofascistas, o mundo cripto é povoado disso. Com ideias econômicas absolutamente falsas, provadas historicamente como improcedentes, mas que são empunhadas por esse setor militante da extrema direita e liderado por um grupo de pessoas que lucra alto com isso. Esse é mais um dos aspectos não muito luminosos dessa nova situação que a presidência do Trump traz.

E como você falou ele é imprevisível, amanhã ele pode mudar de posição e voltar atrás.

É por isso que as pessoas ficam meio assim com o Trump. Mas isso, ao meu ver, é uma forma do Trump conseguir construir em torno dele e da figura dele esse mover dos astros na vida política. É como se tudo precisasse agradar a ele para poder funcionar. E foi isso que ele fez com a indústria de tecnologia dos EUA. Se você quiser se dar bem, lucrar, ser feliz, projetar seu poder globalmente, você vai ter que me agradar. Não são as instituições, não são os processos políticos dos partidos, os grupos. Sou eu. E quer saber mais? Se amanhã eu acordar com um humor diferente e não achar que você está me agradando, tchau. 

E depois de tudo que ele viveu e ele conseguiu sobreviver politicamente e sair ainda mais forte, isso catapultou ainda mais esse tipo de prática ainda mais e fez com que a oligarquia empresarial americano, porque é esse o nome, uma tecno-oligarquia, fosse lá beijar a mão dele. 

Com esse destaque dado à indústria cripto com a eleição de Trump, você acha que o setor está próximo de alcançar o que eles sempre almejaram? 

Eles surgiram com a ideia de ‘nós vamos destruir o estado, acabar com o dinheiro estatal, substituir o dólar como moeda global’. Isso é um delírio absoluto, isso não vai acontecer. Não há a menor hipótese técnica, material, política, econômica, isso não vai acontecer nem com Trump e nem com ninguém. Mas o que vai acontecer é que isso se torna fundamental em vários desenvolvimentos econômicos e políticos contemporâneos. E isso escorre para outros setores da vida tecnológica, do desenvolvimento tecnológico.

Essas tecnologias impactam a subjetivação política das pessoas em distintos lugares, incluindo no Brasil. A história lá do pequeno empreendedor, da economia informal, apoiador do Marçal, é aquela coisa, é o pessoal que é atraído pelo mundo cripto, de ganhar dinheiro rápido. A filosofia e a ideia do neoliberalismo extremado avançado, hiper individualizado, tipo a boia de salvação, é a aposta. 

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Aí tem o mundo do tigrinho, das bets. É a ideia de ‘estou desesperado, não tenho prospecto, o mundo tá com expectativas declinantes em todas as dimensões’. O que resta é apostar alto para ganhar alto e eu quero aqueles que vocalizem, especialmente de uma maneira forte e agressiva, esse desejo que, no limite, é quase uma pulsão de morte destrutiva. 

O mundo cripto desde o início encarna isso muito fortemente, é um desenvolvimento dark, por assim dizer, do Vale do Silício. Eu comecei a estudar esse negócio por aí. É hiper-utópico de um lado, mas de um utopismo dark, cínico, pessimista, hiperindividualista, extremado na lógica de mercado, na competição levada ao paroxismo. E que cada vez mais ocupa o palco principal da vida política. Aí escrevi um livro sobre esse negócio que se chama ‘Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico’. 

É curioso que você menciona o Marçal porque vejo muita convergência entre o público dele e o público cripto. Ele, inclusive, como o Trump, mudou de posição. Começou o ano dizendo que só bandido usa, e no final diz que pensava em comprar bitcoin. 

O bitcoin é todo sobre essa retórica e uma retórica muito belicosa, masculinista mesmo. O bitcoin era um espaço, ainda hoje é, mas já foi mais porque ganhou mais complexidade e dimensão, mas é um espaço largamente dominado por homens brancos de meia-idade. O público-alvo do extremismo político mais histriônico, então essas afinidades eletivas se encontram de uma maneira muito intrigante no caso das criptomoedas e do bitcoin. 

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