O mercado de ações de tecnologia despencou nos EUA, depois que a China aparentemente expôs que as empresas envolvidas em IA estavam completamente supervalorizadas. É uma consequência previsível da forma como o governo dos EUA se envolveu com o Vale do Silício, e vice-versa.
Qualquer pessoa que tenha acompanhado casualmente o assunto viu o que ia acontecer. As empresas de tecnologia dos EUA, com apoio do governo federal (e do Pentágono), chegaram a uma posição de domínio global por meio de verdadeiras inovações. Microsoft, Facebook, Apple, Google e Amazon reformularam o mundo. A Microsoft, uma das primeiras a se destacar, tentou deter essa inovação comprando ou eliminando seus concorrentes, mas, em 1998, sofreu um processo nos EUA por infração às leis de proteção da concorrência. O governo Bush encerrou o caso com um acordo, e recuou no esforço de desmembrar a empresa.
O que veio em seguida foi uma adesão às big techs de ambos os lados do espectro político: durante os governos Bush e Obama houve crescimento desenfreado e grandes operações societárias. Quando as empresas de tecnologia viam empresas menores inovando, elas compravam a empresa, acabavam com ela, e absorviam parte de sua equipe.
Um movimento antimonopolista começou a fermentar, levando a processos contra Facebook, Amazon, Google e Apple ao longo da última década. Mas ficou claro que o fosso que os EUA construíram para proteger suas empresas da competição interna acabou criando as condições que permitiram que elas atrofiassem. Elas engordaram e ficaram satisfeitas em seus castelos. Seu negócio deixou de ser a inovação tecnológica, e passou a ser a alquimia das planilhas, convertendo métricas inventadas em avaliações em dólares, afastadas da realidade.
Agora, a DeepSeek expôs o golpe. Com apenas uma pequena fração dos recursos, e sem acesso a toda a extensão da tecnologia de chips dos EUA, a empresa chinesa DeepSeek deixou o Vale do Silício de calças curtas.
A DeepSeek está cumprindo a missão original da OpenAI, fornecendo um modelo de código aberto que tem um desempenho melhor do que qualquer outro no mercado.
A empresa estadunidense OpenAI começou como uma organização sem fins lucrativos dedicada a ampliar o acesso à IA, como o próprio nome sugere. Seu chefão, Sam Altman, conseguiu fazer a transição para uma empresa com fins lucrativos, e fechar o capital. Agora, ironicamente, a DeepSeek está cumprindo a missão original da OpenAI, fornecendo um modelo de código aberto que tem simplesmente um desempenho melhor do que qualquer outro no mercado.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, Trump comemora um investimento (possivelmente exagerado) de 500 bilhões de dólares (2,95 trilhões de reais) no Texas para alimentar o poder computacional de IA que parece ter se tornado obsoleto — ou muito menos relevante — graças à inovação da DeepSeek. Trump está entupindo seu governo com adeptos das criptomoedas, magnatas da tecnologia que se recusam a desinvestir, e lançou até sua própria memecoin golpista. Enquanto isso, os principais assessores de tecnologia de Trump, como Elon Musk, têm extensos laços comerciais diretamente com a China. Não é preciso forçar muito a vista para enxergar qual desses países vai vencer a competição.
Abaixo está uma explicação com perguntas e respostas sobre a DeepSeek, elaborada por nosso correspondente Waqas Ahmed.
P: O que é a DeepSeek e por que ela está causando o colapso das ações?
R: A empresa chinesa DeepSeek lançou um modelo de IA que é tão bom quanto seus equivalentes dos EUA, e tem código aberto. Isso mudou de maneira fundamental os aspectos econômicos e políticos da indústria de IA, que vem crescendo rapidamente, até então liderada por um oligopólio de empresas de tecnologia dos EUA, que tentavam estabelecer os grandes modelos de linguagem (LLMs) como o avanço tecnológico decisivo do século, e se posicionar como os guardiões do seu tempero secreto.
Há muito burburinho sobre o custo de construção do DeepSeek ter sido de apenas 6 milhões de dólares (35 milhões de reais), embora esse valor não inclua pesquisa e desenvolvimento. E apesar dos controles de exportação, a DeepSeek conseguiu usar um número não desprezível de chips de alta tecnologia que os EUA estavam tentando esconder. No entanto, ainda é um enorme choque para a indústria dos EUA.
P: O que são LLMs e como eles ganharam espaço?
R: Um artigo de 2017, com o título “Attention is all you need” (Você só precisa de atenção) foi um ponto de virada no setor de IA. O artigo descrevia um método de criação de um modelo de aprendizado por máquina que poderia produzir texto semelhante ao humano, com precisão e escala sem precedentes, usando uma arquitetura chamada de “transformers”. Esses “transformers” melhoraram substancialmente uma classe de modelos chamado Grandes Modelos de Linguagem (LLMs, na sigla em inglês). Os LLMs usam imensas quantidades de texto — livros, artigos, e-mails, receitas, entrevistas, tudo — para criar representações matemáticas internas das relações entre bilhões de palavras e frases — ou, mais precisamente, entre combinações de tokens que são encontrados nas linguagens humanas naturais.
Até 2017, os LLMs não eram muito úteis, mas os “transformers” mudaram isso. Ao processar grandes volumes de texto usando a arquitetura dos transformers, esses modelos passaram a conseguir “aprender” como as palavras se articulavam em diferentes contextos, e a detectar nuances que os computadores nunca tinha conseguido perceber. Isso permitiu que esses modelos produzissem texto muito relevante em resposta a um prompt ou uma pergunta dos usuários.
P: Como começou a onda da IA?
R: A OpenAi se tornou a primeira empresa dos EUA a demonstrar que, se for possível tirar um instantâneo de toda a internet conhecida e todos os livros digitalizados existentes, sem se preocupar muito com a propriedade intelectual, é possível criar um modelo tão bom que seus resultados quase não se distinguem da produção de um burocrata americano de inteligência medíocre. A empresa mostrou que seu modelo poderia ser treinado para ter conhecimentos especializados em diferentes domínios, e oferecer respostas aprofundadas para perguntas muito específicas. Ele foi aprovado em provas de programação, no exame da ordem dos advogados nos EUA, e em um curso de administração. Os resultados foram tão impressionantes, que a OpenAI passou a alegar que valia um zilhão de dólares e que o futuro da humanidade dependia da empresa.
P: Qual a situação atual do setor de IA?
R: A OpenAI, parcialmente controlada pela Microsoft, foi a primeira a lançar um importante produto de LLM, o ChatGPT, em novembro de 2022. Logo em seguida, a Meta lançou seu próprio modelo, o LLaMa, e o Google lançou o Gemini. Todas as três empresas tinham um volume enorme de texto para usar no treinamento de seus modelos, mas um LLM precisa de outro ingrediente fundamental: poder computacional para processar esse texto e gerar respostas às consultas dos usuários. A principal empresa que fabrica os equipamentos de computação atualmente é a Nvidia, cujas ações se valorizaram exponencialmente em resposta à guerra das LLMs.
Esses equipamentos, um tipo de chip, são chamados GPUs, ou unidades de processamento gráfico. Eles foram inventados originalmente para processar a computação gráfica para jogos, como renderização 3D. Posteriormente, se popularizaram porque seus recursos de processamento paralelo eram ideais para a mineração de criptomoedas. Agora, por razões semelhantes, eles também se mostraram ótimos para o processamento de dados de IA. Assim, a Nvidia vem surfando as diferentes ondas do mercado, à medida que se descobrem novos usos para seu produto.
Nos últimos anos, Meta, Google, Microsoft e OpenAI conseguiram acumular centenas de milhares das GPUs mais avançadas, e receber tratamento preferencial da Nvidia e sua fornecedora, TSMC, a principal fabricante mundial de semicondutores.
A indústria tecnológica dos EUA vem tomando medidas relevantes para se organizar em torno da IA. Tudo isso é uma tentativa de estabelecer dominância naquela que consideram a próxima fronteira da inovação tecnológica.
P: Como a China está envolvida?
R: Em seu esforço para conter a China, o governo dos EUA vem em uma missão para impedir que as empresas chineses assumam a liderança em diferentes áreas da tecnologia. Uma das formas de fazer isso é exercer controle sobre as cadeias globais de suprimentos, e nesse processo, proteger as próprias empresas da concorrência. Os EUA impediram a entrada da Huawei no país quando ela estava prestes a ultrapassar a Apple e se tornar a segunda maior fabricante de smartphones do mundo; impediram os países europeus de instalarem infraestrutura 5G fabricada pela Huawei, quando era claramente mais econômica; e, mais recentemente, aprovaram a legislação para proibir o TikTok, o aplicativo chinês de redes sociais que se tornou imensamente popular nos EUA, e cujo algoritmo de recomendação nenhuma outra rede social dos EUA conseguiu suplantar.
Manter a dominância sobre a tecnologia mundial é uma preocupação fundamental mencionada repetidamente pelos decisores políticos dos EUA, que identificaram a IA como fundamental à manutenção dessa dominância.
A alegação dos EUA de que a Huawei e outras empresas chinesas de tecnologia estão indissociavelmente atreladas à estratégia geopolítica da China, e colocam as empresas e os povos ocidentais em risco aumentado de vigilância e espionagem corporativa, está fundamentada na realidade. A DeepSeek não esconde quantos dados coleta na plataforma, incluindo os toques no teclado:
Coletamos certas informações de dispositivo e rede quando você acessa o Serviço. Essas informações incluem o modelo do dispositivo, o sistema operacional, padrões ou ritmos de pressionamento de teclas, endereço IP, e idioma do sistema.
Política de Privacidade da DeepSeek
No entanto, o DeepSeek tem código aberto e pode ser executada localmente em um dispositivo separado, o que permite vendar os olhos curiosos do presidente Xi Jinping.
Manter a dominância sobre a tecnologia mundial é uma preocupação fundamental mencionada repetidamente pelos decisores políticos dos EUA, que identificaram a IA como fundamental à manutenção dessa dominância. Em 2018, quando o governo dos EUA estava banindo a Huawei, percebeu que precisava fazer o mesmo com outras tecnologias, como os chips semicondutores, o principal componente de CPUs e GPUs. A grave escassez de chips causada pela interrupção na cadeia de suprimentos global durante a pandemia da Covid-19 mostrou que os chips mais avançados são um recurso escasso. Em 2022, o governo Biden instituiu sanções pormenorizadas contra a China, impedindo a exportação desses chips para o país e impedindo o acesso das empresas chinesas de IA às GPUs mais recentes e eficientes. Na mesma época, foi aprovada a lei CHIPS, que concedeu subsídios de mais de 50 bilhões de dólares (300 bilhões de reais) à fabricação nacional de semicondutores.
P: Por que há tanto interesse repentino na IA?
R: O marketing exagerado e as técnicas de venda desonestas da indústria de IA nos EUA causaram uma espécie de pânico entre os decisores políticos do governo com menos conhecimento tecnológico. Muitos especialistas do setor alegavam que os avanços nos LLMs poderiam em breve levar à criação de uma Inteligência Artificial Geral (AGI), basicamente um computador que pensa como um ser humano e desempenha bem várias tarefas diferentes. Alguns já soaram o alerta de que algo assim poderia se tornar consciente e maléfico. Mas até mesmo os detratores concordam que os LLMs são uma tecnologia revolucionária, que mudará fundamentalmente a forma como nos relacionamos com os computadores.
P: Por que os executivos das big techs estão tão furiosos?
As big techs também vêm dizendo ao governo e aos investidores que desenvolver IA é muito, muito caro. Em sua primeira semana no poder, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou o investimento de 500 bilhões de dólares (3 trilhões de reais) em IA no setor privado, por meio de um projeto chamado Stargate — uma colaboração entre OpenIA, Softbank, e Oracle.
No passado, o fundador da OpenIA, Sam Altman, chegou a declarar que precisaria de até 7 trilhões de dólares (42 trilhões de reais) para criar a IA dos seus sonhos, e que estava levantando investimentos com essa meta em vista. Para fins de contexto, nunca na história do mundo alguém gastou tanto dinheiro em uma única coisa. Mas a mensagem de fundo parecia ser: essa é uma tecnologia mágica e uma força mais poderosa do que tudo que o mundo já viu, precisamos de quantias astronômicas de dinheiro para construí-la, e precisamos da proteção do governo dos EUA enquanto fazemos isso.
Então veio uma minúscula empresa chinesa, e furou essa bolha com seu projeto paralelo. A DeepSeek usou o equivalente a 5,5 milhões de dólares (32 milhões de reais) em capacidade computacional, usando apenas as 2.048 GPUs Nvidia H800 que a empresa chinesa tinha, porque não podia comprar as GPUs H100 ou A100, superiores, que as empresas americanas acumulam às centenas de milhares.
Em comparação, a Meta AI tinha estabelecido o objetivo de adquirir um total de 600 mil GPUs H100 até o final de 2024. Elon Musk tem 100 mil GPUs, e a OpenAI treinou seu modelo GPT-4 em aproximadamente 25 mil GPUs A100. A DeepSeek foi fundada pela gestora de fundos High Flyer, que queria colocar em uso seu conjunto de 10.000 GPUs H800, segundo a imprensa chinesa.
O que se conta é que a DeepSeek contratou uma equipe muito jovem e os incentivou a inovar e aproveitar ao máximo o hardware limitado. Eles lançaram o modelo DeepSeek-V3 no mês passado, que supera o GPT-4 da OpenAI e os demais modelos da indústria na maioria dos benchmarks. Não há um desenvolvimento significativo da tecnologia básica, mas eles usam o hardware de forma eficiente e treinam melhor o modelo.
Os executivos das big techs estão mordidos, porque isso depõe contra eles. O que complica mais a questão é que a DeepSeek lançou seu modelo e seus métodos de treinamento como um software de código aberto, o que significa que qualquer um pode ver como eles construíram o modelo e replicar o processo. Significa também que os usuários podem instalar modelos DeepSeek em suas próprias máquinas e executá-los em suas próprias GPUs, onde aparentemente eles têm um desempenho muito bom.
P: Como os executivos de tecnologia reagiram?
R: Embora tenha havido uma significativa mudança de clima, no sentido de “agora acabou“, alguns ainda sustentam que “estamos de volta demais“, e que esse é o “momento Sputnik da IA“. Outros não foram tão magnânimos.
“Deepseek é uma guerra econômica e psicológica do estado do PCC para tirar a lucratividade da IA americana. Eles estão fingindo que o custo era baixo para justificar os preços baixos, na esperança de que todos mudem para lá, prejudicando a competitividade da IA nos EUA, não mordam a isca”, tuitou Neal Khosla, filho do investidor Vinod Khosla. A Khosla Ventures captou mais de 400 milhões de dólares (2,4 bilhões de reais) para a OpenAI, e é uma das maiores investidoras na empresa.
“A DeepSeek é um alerta para a América”, disse Alexandr Wang, fundador da empresa de IA Scale AI, e um dos que acusaram abertamente a DeepSeek de esconder um estoque secreto de 50 mil GPUs H100.
“As acusações/obsessões sobre o uso de H100 pela DeepSeek parecem um time de meninos ricos que perderam o jogo para um time de meninos pobres, que nem podiam usar sapatos”, tuitou Jen Zhu, investidor em IA, “e agora os meninos ricos estão exigindo uma investigação para saber se eles usaram sapatos, em vez de treinar mais para melhorar”.
P: Por que a bolsa de valores despencou?
R: Embora o DeepSeek V3 já tenha sido lançado há quase um mês, só agora as notícias começaram a chegar ao mercado. As ações da Nvidia caíram 17% na segunda-feira (27), perdendo aproximadamente 589 bilhões de dólares (3,5 trilhões de reais) de sua capitalização de mercado, a maior perda de valor de uma ação em um único dia na história da bolsa de valores. Isso desencadeou um banho de sangue nas ações de tecnologia, com perda total de mais de 1 trilhão de dólares. Quando o modelo foi lançado, no final de dezembro, Andrej Karpathy, um importante cientista da área, comentou sobre a eficiência surpreendente, mas as repercussões do lançamento de um modelo fundacional de código aberto por uma empresa chinesa desconhecida só cresceram quando o Vale do Silício começou a testar o DeepSeek em seus computadores pessoais, o que fez o DeepSeek chegar ao primeiro lugar entre os aplicativos mais baixados.
Ironicamente, o completo desespero dos executivos de tecnologia, que gerou níveis inéditos de chororô, está contribuindo para a viralização do DeepSeek.
N. da E.: A matéria original foi resumida para se adequar melhor ao público brasileiro.
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