A Secretaria de Educação do Pará, chefiada por Rossieli Soares, assinou contratos de mais de R$ 500 milhões com uma empresa ligada a um de seus doadores de campanha na eleição de 2022, quando concorreu a deputado federal pelo PSDB de São Paulo. As compras evidenciam as ligações empresariais do secretário, que está no epicentro da crise na educação que assolou o governo paraense nas últimas semanas.
Sob o comando de Rossieli, a Secretaria de Educação do Pará comprou 1,43 milhão de kits didáticos, que incluem correção de provas com inteligência artificial, da Somos Educação, grupo ligado ao empresário Mario Ghio Jr. O negócio se deu por meio da Sudu Tecnologia Educacional, que representa a Somos no Pará.
Em 2022, Mario Ghio Jr., que era diretor-presidente e hoje é conselheiro da Somos, doou R$ 20 mil à campanha de Rossieli, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral. Rossieli havia sido ministro da Educação no governo de Michel Temer e secretário na gestão de João Doria em São Paulo.
Com pouco mais de 33 mil votos, naquela eleição Rossieli não se elegeu – mas, meses depois, em janeiro de 2023, foi nomeado por Helder Barbalho, do MDB, para assumir a pasta de Educação no governo paraense. “Compreende bem os desafios educacionais na Amazônia”, disse o governador na época.
Agora, Rossieli virou pivô da crise da educação que assola o Pará às vésperas da COP30. A crise começou após Barbalho sancionar a lei estadual 10.820/2024, que desarticulou programas de ensino em comunidades isoladas, rebaixou a remuneração de professores e abriu caminho para a expansão do ensino a distância – o que desencadeou uma greve de professores e levou centenas de indígenas a ocupar a sede da Seduc, exigindo sua revogação e a demissão de Rossieli.
Pressionado pelos protestos, o governador enviou na semana passada um projeto para revogar a lei. A proposta foi aprovada por unanimidade pela Assembleia Legislativa nesta quarta-feira, 12. Rossieli ainda permanece no cargo.
‘Representante exclusiva’ e confirmação em um dia
A compra dos materiais da Somos pelo governo do Pará não foi publicada no Diário Oficial. É que o contrato foi firmado com uma intermediária, a Sudu Tecnologia Educacional, que é representante oficial da Somos no Pará.
Ao observar o rito seguido durante um dos certames vencidos pela Sudu, um detalhe chama a atenção: a Consulta Pública 001/2023, lançada em 31 de janeiro de 2023 visando buscar materiais para subsidiar a primeira licitação, previa apenas um dia de prazo para confirmar a participação.
Fundada em 2019 em Manaus, a Sudu já tinha fornecido materiais para o governo estadual do Amazonas e para a prefeitura de Porto Alegre. Os dois acordos renderam investigações das polícias Federal e Civil, respectivamente, por suspeitas de fraudes em licitações.
Mesmo com esse histórico, a Sudu foi contratada pelo governo paraense ao vencer licitações para fornecer material didático – incluindo o projeto “Prepara Pará”, dedicado a treinar os estudantes para exames de avaliação de aprendizagem. Esse projeto conta com livros e plataformas online produzidas pela Somos, conforme se vê no material entregue às escolas.
Procuradas pelo Intercept, Somos, Sudu e a própria Seduc confirmaram a relação direta entre as duas empresas para a execução dos contratos milionários. “A Somos Sistemas de Ensino S.A. esclarece que, na atualidade, possui um contrato em vigor de fornecimento exclusivo de soluções educacionais e prestação de serviços de assessoria pedagógica com a SUDU Tecnologia Educacional Ltda”, disse a empresa. “A Sudu é a representante da Somos Educação no Pará e comercializa materiais didáticos, incluindo o ‘Prepara Pará’, produzido pela Somos”, declarou a Seduc, em nota.
Essa relação ficou explícita ainda no “teste de desempenho” relativo ao Pregão Eletrônico 90010/2024, ocorrido em 12 de junho de 2024. O relatório do teste traz em sua primeira página a informação de que a “licitante” do contrato é a Somos Educação. A empresa enviou a Belém três funcionários para mostrar seus produtos à Seduc, enquanto a Sudu não mandou nenhum.
Tchau, professor. Olá, IA
O primeiro contrato entre a Seduc e a Sudu, representante da Somos no Pará, foi firmado no dia 5 de abril de 2023, dois meses depois de Rossieli assumir a Secretaria de Educação do estado.
Em 27 de fevereiro de 2024, a Sudu ganhou outro contrato, no valor de R$ 159,9 milhões, pela venda de mais 315 mil unidades do “ecossistema instrutivo teórico prático”. Em 27 de dezembro de 2024, mais um: agora para a compra de 811 mil unidades de um “material instrucional teórico prático”, ao custo de R$ 187,6 milhões. Os dois também foram cumpridos com a entrega de materiais produzidos pelo grupo Somos.
Nesse último, apenas uma concorrente chegou à fase de testes para disputar com a Sudu, mas os servidores da Seduc consideraram a plataforma online da editora Moderna inferior.
Portanto, em dois anos, a Seduc pagou à Sudu R$ 500 milhões pela compra de 1,43 milhão de kits de livros. Para comparação, a rede estadual do Pará tem cerca de 600 mil alunos e 22 mil professores, segundo informações do Sintepp, o sindicato da categoria.
Empresa patrocinou evento de grupo presidido pelo secretário
A doação eleitoral para Rossieli em 2022 e os contratos firmados depois pela Secretaria de Educação do Pará, comandada por ele, com uma representante do grupo Somos, ligado ao doador Mario Ghio Jr., não foram um fato isolado.
Enquanto estava com contrato ativo para fornecer material didático para as escolas do Pará, a Somos patrocinou em São Paulo um evento do Lide Educação, grupo de empresários cujo presidente é justamente Rossieli Soares – sim, ele acumula o cargo de secretário da educação no Pará e a chefia de um grupo de lobby de empresários do setor.
A Somos Educação é a antiga Abril Educação, fundada em 1960 por Victor Civita para fornecer materiais didáticos. Em 2015, a empresa mudou o nome para Somos e foi vendida para um fundo de investimento. Em 2018, foi comprada por R$ 4,6 bilhões pela Kroton, atual Cogna Educação, mega conglomerado de educação que tem faculdades e editoras didáticas.
Mario Ghio Jr. foi diretor-presidente da Somos por quase cinco anos, entre 2018 e 2023. Em 24 de março de 2023, ele deixou a presidência e passou a atuar no conselho de administração da empresa. Duas semanas depois, a Sudu, que representa a Somos no Pará, firmou o primeiro contrato para fornecer material didático ao governo estadual.
Segundo documentos oficiais, o governo do Pará se mostrou particularmente interessado no modelo de correção de redações com inteligência artificial da empresa. “Foi demonstrado que a inteligência artificial apresenta apontamentos tanto positivos, como elogios, quando em formas de correção ortográfica”, cita um dos relatórios de licitação.
Em setembro de 2024, em meio a assinatura dos acordos milionários com o governo paraense por intermédio da Sudu, a Somos patrocinou o “Seminário Lide Educação”, em São Paulo, evento no qual políticos e empresários, entre eles Mario Ghio Jr e o próprio Rossieli, apresentaram suas ideias e projetos para a educação pública no Brasil.
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Para o secretário, que é presidente do braço educacional do Lide, associação comandada por seu padrinho político, João Doria, é preciso que a iniciativa privada se envolva na educação pública do país. “Fico feliz que o agro queira discutir educação, o setor de energia, o setor de comércio, a indústria, todo mundo precisa meter a mão nessa cumbuca pra que a sociedade de fato compre a ideia”, disse Rossieli para uma plateia de empresários desses setores.
O Pará não tem uma legislação específica sobre conflitos de interesse. Mas os servidores públicos estaduais estão sujeitos às normas gerais estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa, que veda “favorecer parentes ou amigos em processos administrativos ou licitações” ou “exercer atividades privadas que comprometam a isenção e imparcialidade no cargo público”.
A Secretaria de Educação do Pará nega qualquer irregularidade. “A contratação da Sudu foi resultado de procedimento que seguiu rigorosamente a legislação vigente, com ordenamento jurídico para atender às necessidades da Administração Pública”, afirmou o órgão.
A secretaria também afirma que a atuação de Rossieli no Lide Educação é um trabalho voluntário e que as doações recebidas durante a campanha de 2022 “foram registradas e declaradas à Justiça Eleitoral de forma transparente”.
A Somos Educação disse ao Intercept que não realizou nenhum tipo de doação a candidatos e seu posicionamento é apartidário, mas que “eventuais manifestações políticas de colaboradores e administradores em seu próprio nome” não violam as políticas da empresa.
Também disse que não tem uma parceria direta com a Seduc – mas, sim, um contrato em vigor de fornecimento exclusivo de soluções educacionais com a Sudu. A Sudu, por sua vez, afirmou que é uma empresa “especializada na comercialização de materiais didáticos, com sede no norte do País”, e “distribuidora exclusiva das soluções educacionais da Somos Educação para o estado do Pará”. Mario Ghio Jr. preferiu não se manifestar.
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