Oscar Paris era um dos mais influentes jornalistas esportivos do Nordeste quando levou ao ar, em 2008, uma reportagem explosiva: os registros federativos de um craque do futebol internacional haviam sido adulterados. Os dados falsos, de acordo com a sua descoberta, garantiriam mais de R$ 900 mil a um clube do interior da Bahia.
Na matéria, uma ex-funcionária da Federação Baiana de Futebol, a FBF, que assinou o documento com informações inverídicas, disse que jamais se esqueceria do nome daquele jogador – Liedson – e que lembrava bem daquele caso. O documento, segundo ela, havia sido “alterado” por Ednaldo Rodrigues, então presidente da FBF.
Foi a última reportagem da vida de Paris e o início do que o jornalista entende ter sido uma perseguição judicial encabeçada por Ednaldo, o agora todo poderoso presidente da Confederação Brasileira de Futebol, a CBF.
Paris afirma que perdeu os empregos que tinha na TVE, a televisão pública do governo da Bahia, e no jornal A Tarde. Também conta que nunca mais recebeu qualquer oportunidade no jornalismo esportivo. Passou a se dedicar a se defender dos oito processos abertos por Ednaldo e pela FBF contra ele em diferentes varas e esferas judiciais baianas, por calúnia e difamação.
Só em março de 2025, depois de mais de 16 anos, comemorou o que entende ser o fim do calvário: a décima vitória na Justiça (os processos foram unificados na segunda instância), desta vez em decisão monocrática do ministro Sebastião Reis Júnior no Superior Tribunal de Justiça, o STJ.
As despesas com a defesa já se aproximam de R$ 1 milhão, nas contas de Paris e do seu advogado, Gileno Felix. E o valor pode aumentar, visto que ainda há alguns recursos pendentes.
“Eu não esperava essa retaliação, porque não apontei para ninguém, não disse que ninguém fez isso ou aquilo. Eu fiz jornalismo. Eu perguntei o que havia acontecido, por que aqueles erros absurdos teriam ocorrido”, disse Paris, em entrevista ao Intercept Brasil.
Ednaldo afirma que as essas ações “sempre tiveram como único objetivo a reparação de ofensas graves e injustificadas à sua honra e reputação” e “jamais se prestaram a qualquer forma de retaliação ou intimidação à atividade jornalística”.
“Direito de petição não se confunde com perseguição”, diz a nota, enviada pelo mesmo escritório de advocacia que o representa em processos contra jornalistas. Um dos últimos recursos da defesa de Ednaldo foi negado, mais uma vez, pelo STJ, na terça-feira, 22 de abril.
Da TV ao ostracismo: a queda livre de Oscar Paris
Foi lembrando de tudo que viveu que o veterano chorou ao ler que seis jornalistas haviam sido afastados pela ESPN depois de dedicarem um programa de mesa redonda, o Linha de Passe, à atual gestão da CBF, comandada por Ednaldo.
O afastamento foi motivado pelos comentários feitos sobre uma reportagem da revista piauí que mostrou, entre outras revelações, que Ednaldo ampliou para R$ 215 mil os salários dos presidentes de federações estaduais que, recentemente, garantiram sua reeleição na CBF sem concorrentes. O presidente da confederação, ainda de acordo com a reportagem, pagou também despesas pessoais de alguns desses eleitores, enquanto o futebol brasileiro cambaleia em campo e enfrenta problemas de infraestrutura e falta de apoio fora dele.
“A reportagem [da piauí] não me surpreendeu. A surpresa é que finalmente um veículo atentou para o fato de que as instituições esportivas do Brasil precisam ser vistas com lupa”, afirma Paris.
Gaúcho, o jornalista começou a carreira no Sul do país e fez fama na Bahia. Havia sido chefe de reportagem, editor e repórter especial no Correio da Bahia, comentarista em diversas rádios, narrador no SBT, na Band (onde apresentou o Jogo Aberto Bahia) e nos canais próprios da Sky e da DirecTV.
Quando ousou investigar uma denúncia que envolvia Ednaldo, em 2008, era apresentador da versão baiana do Cartão Verde, popular programa criado pela TV Cultura em São Paulo e replicado em outros canais educativos, incluindo a TVE da Bahia, e cronista do A Tarde.
‘Ninguém nem replicava a matéria, exceto duas rádios que eram favoráveis a Ednaldo e falavam barbaridades de mim’.
Paris diz que a decisão de Ednaldo e da FBF de ingressarem com processos contra ele afetaram diretamente sua carreira profissional. Na época, ele havia saído da TVE momentaneamente para participar de uma campanha política do PT, partido que governava o estado e, portanto, o canal. O acordo, segundo ele, era que retornasse ao posto depois da eleição.
“O combinado era eu ser recontratado após as eleições municipais. Enquanto isso, o Ednaldo entrou com os processos. Quando eu ia voltar, o diretor-geral do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia disse que não podia me recontratar”, relembra Paris. Após informar a Paris que o jornalista não voltaria, a TVE, que até então também era ré nos processos movidos por Ednaldo e a FBF, foi retirada das ações pelos denunciantes.
A TV pública, segundo Paris, ainda se recusou a defender o jornalista que estava sendo processado por material levado ao ar pela emissora. “Alegaram que, como eu havia saído da empresa, eles não precisavam mais me defender.” A emissora não respondeu aos questionamentos do Intercept.
Do jornal A Tarde, Paris conta foi mandado embora enquanto escrevia uma coluna, na mesma época em que seu retorno à TVE foi barrado. “Recebi um telefonema dizendo que meus serviços estavam dispensados, que haveria uma reformulação interna. E ficou nisso.”
Apesar do currículo de peso e das portas que havia deixado abertas nos vários veículos pelos quais passou em Salvador e em outras cidades baianas, Paris nunca mais foi contratado para nenhum trabalho no jornalismo. Quando pediu emprego, ouviu “não”.
“Me senti completamente abandonado, por jornais, entidades. Ninguém nem replicava a matéria, exceto duas rádios que eram favoráveis a Ednaldo, que falavam barbaridades de mim.” Agora, após a vitória no STJ, Paris recebeu moção de aplausos da Associação Baiana de Imprensa, corroborado pelo sindicato dos jornalistas da Bahia.
Sem emprego e dedicado a se defender na justiça de um homem e uma entidade influentes, Paris também viu sua vida pessoal desmoronar.
“Quando você vê sem salário, desempregado, com filho para criar, acontece tudo com sua cabeça. Tive depressão, fiquei abalado emocionalmente. Só não me entreguei porque olhava para o meu filho e via alguém que dependia de mim, tinha que criar, foi meu filho que me manteve em pé”, conta o jornalista.
Durante o período, ele ainda enfrentou dois cânceres, que encontraram um homem de meia-idade abalado emocional e fisicamente.
Resistiu, porém, à doença e às acusações. Com o jornalismo o rejeitando, conseguiu, anos depois, espaço como assessor de comunicação em órgãos públicos. Quando atendeu a reportagem do Intercept, por telefone, subia o Rio Paraguai, entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em uma expedição da Fiocruz.
Apesar de tudo, Paris diz que continua adorando futebol. “Futebol é um patrimônio cultural imaterial do nosso povo. E eu faço parte disso, como torcedor e profissional.”
O caso Liedson
Pelo chamado “mecanismo de solidariedade”, 5% do valor total da transferência de um jogador de futebol, a qualquer tempo, é repassado aos clubes pelos quais ele atuou dos 12 aos 23 anos, como forma de valorizar quem investe na base. Cabe a esses times, porém, identificar a negociação de um ex-atleta seu e solicitar sua porcentagem.
Quando o Sporting, de Portugal, pagou R$ 7 milhões para comprar Liedson junto ao Corinthians, em 2003, quase R$ 300 mil (R$ 1,3 milhões corrigidos pelo IPCA) ficaram à deriva porque o atacante não teve base, como se diz no futebol.
Natural de Cairu, no interior da Bahia, Liedson não foi federado nas categorias inferiores e só disputou sua primeira competição oficial aos 21 anos, quando defendeu a Liga Valenciana no campeonato estadual intermunicipal. Até então, jogava por uma equipe de várzea de Valença: o Bahia.
Dois anos após a ida de Liedson ao Sporting, contudo, a FBF de Ednaldo produziu um certificado, depois enviado à Fifa, dizendo que o atacante havia sido registrado pelo Esporte Clube Poções em 1993, aos 15 anos, permanecendo no clube até setembro de 2000, perto de completar 23 anos.
Liedson, de fato, jogou no Poções, clube de cidade homônima no sudoeste da Bahia, mas somente durante nove meses de 2000, quando tinha 22 anos, após se destacar no intermunicipal e assinar seu primeiro contrato profissional para ganhar menos de um salário mínimo.
Pelo mecanismo de solidariedade, o Poções tinha direito a 0,3% daqueles R$ 7 milhões (cerca de R$ 70 mil em valores corrigidos). Mas, quando requereu à Fifa sua parcela do bolo, apresentou o certificado com informações falsas assinado pela FBF que daria direito a 4% do valor da transferência – ou seja, mais de R$ 900 mil em valores corrigidos pelo IPCA.
Uma verba relativamente pequena para grandes clubes, mas que mudaria a história do Poções, que havia sido penúltimo no Campeonato Baiano daquele ano e acabou se licenciando do futebol profissional em 2012 por dívidas.
Documentos exibidos na reportagem de Oscar Paris mostram que o Sporting alertou a Fifa, que cobrou a CBF sobre as informações incorretas. Elas foram corrigidas pelo próprio Liedson, que escreveu uma carta afirmando que não jogou pelo Poções até os 21 anos.
Uma das pessoas a assinar o documento que permitiu ao Poções requerer os 4% foi Maria Balbina B. de Souza. Ela foi ouvida na reportagem feita por Paris em 2008 e denunciou a fraude em uma entrevista gravada.
“Esse documento foi alterado pelo presidente [da FBF, Ednaldo Rodrigues]. Quando eu fiz, eu encaminhei para a presidência. Ele rascunhou e mandou que eu fizesse daquela forma que ele tinha colocado no papel, autorizando eu a assinar”, afirmou Maria Balbina.
Segundo ela, a certidão expedida à Fifa não foi juntada à documentação de Liedson no sistema da federação. “Quando esse prontuário não desceu para o departamento de registro, eu fiquei meio preocupada se aquelas informações estavam corretas ou não. E esse nome é fácil de gravar, né, Liedson”, continuou.
Na matéria, que segue disponível no YouTube, Paris vai até a sede da FBF para ouvir Ednaldo, que justifica o ocorrido. “Quando ele foi para o Poções, que houve um pedido da CBF, informando a vida desse atleta desde seu início, a federação, de forma equivocada, entendeu que o Liedson era também atleta júnior do Poções”, explicou, rejeitando a hipótese de má-fé. Como a fraude foi revelada, o valor não foi repassado pela Fifa ao Poções.
Ednaldo também foi questionado sobre a declaração da ex-funcionária responsabilizando-o pelo documento com informações erradas: “Isso é subjetivo à pessoa. Agora falar de qualquer situação de uma ex-funcionária que não temos nada a falar, só queremos dizer que a certidão é feita por um funcionário e assinada pelo diretor que responde pelo departamento”, respondeu.
O diretor, Wilson Paim, afirmou que tudo não passou de um engano. A FBF só corrigiu o documento em julho de 2006, cerca de um mês depois da carta da Fifa à CBF cobrando explicações sobre as informações falsas.
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A reportagem, de pouco mais de 10 minutos, trouxe ainda entrevista com um funcionário da FBF, não identificado por medo de represálias, afirmando que um jogador do Fluminense de Feira de Santana havia jogado uma partida de forma irregular, já que fora registrado um dia depois do permitido. Paris exibe, na matéria, o documento com a data supostamente rasurada. Ednaldo também foi ouvido a respeito e negou irregularidades.
De acordo com o jornalista, além de ouvir todas as pessoas citadas na reportagem, incluindo Ednaldo, ele também recebeu no Cartão Verde, programa que apresentava à época, na TVE, o advogado da FBF para que pudesse se manifestar sobre as acusações. Fez jornalismo. Pela última vez.
Na nota enviada ao Intercept, os advogados de Ednaldo afirmam que Oscar Paris “imputou falsamente ao Sr. Ednaldo Rodrigues a prática de conduta criminosa, mesmo tendo pleno conhecimento de que o episódio envolvia apenas um erro material em documentação da Federação Baiana de Futebol — prontamente corrigido, sem qualquer impacto desportivo ou prejuízo a terceiros”.
“O certificado em questão continha um erro material, o qual foi prontamente identificado e corrigido nos trâmites administrativos regulares da época. Não houve qualquer comando, ordem ou orientação do Sr. Ednaldo Rodrigues para alterar informações de forma indevida — muito menos para cometer qualquer irregularidade”, afirma a defesa do dirigente.
Para Ednaldo, “trata-se de um episódio administrativo sem qualquer gravidade jurídica ou desportiva”.
Processos em série contra críticos: o modus operandi de Ednaldo
A ofensiva contra Paris exemplifica o modus operandi de Ednaldo. Outros dois jornalistas baianos também foram alvos de ações do dirigente, que é acusado de acionar chefias de veículos para retaliar críticos — como na recente denúncia repercutida pela ESPN, que levou ao afastamento de seis jornalistas.
Um deles é o radialista Márcio Martins, que cobriu toda a gestão de Ednaldo na FBF, de 2001 a 2017, e sua ascensão à CBF nos anos seguintes. Desde 2023, ele foi citado em cinco queixas-crimes feitas por Ednaldo, segundo seus advogados.
“Eu vejo Ednaldo querendo se escudar através do Judiciário. De forma aleatória, porque pega a crítica e aciona o Márcio alegando que está tendo sua honra atingida, sendo que ele é uma pessoa pública e está sendo criticado por todos os lados”, diz o advogado Carlos Magnavita Júnior, em entrevista ao Intercept Brasil.
Márcio cobriu a Copa do Mundo do Qatar, ficou no mesmo hotel de convidados da CBF e foi o primeiro a denunciar na rádio uma comitiva de 49 pessoas levadas por Ednaldo, entre familiares, amigos, políticos e artistas, exposta pela piauí. Mas, sem repercussão na TV e na imprensa escrita baiana, o caso não chegou ao eixo Rio-SP-Brasília em 2022. “Na Bahia, nenhuma emissora de rádio critica. Juliana critica, e só. Não me lembro de outro em Salvador”, diz Márcio.
‘Ele é daquele tipo que não suporta críticas’.
A Juliana mencionada por ele é Juliana Guimarães, da Band Bahia. Ela relatou em um podcast Bargunça que Ednaldo tentou derrubá-la após ser criticado. “Ele é daquele tipo que não suporta críticas. Você fala alguma coisa dele, ele move mundos para acabar com sua vida. Ele tentou fazer isso comigo, (…) começou a tentar me podar. Ligou na diretoria da Band, tentou mandando ofício para a Band”, contou.
Juliana também foi processada após criticar Ednaldo por um time ter chegado de ônibus de linha a uma partida. “Ele faz isso para tentar conseguir o que ele não conseguiu o tempo inteiro, que é me calar e eu não vou fazer o que ele quer.”
Mas Ednaldo nega que persiga jornalistas. Diz a banca que o representa nos processos: “O que existe — e existirá sempre — é o exercício legítimo do direito constitucional de acesso à Justiça, quando sua honra e dignidade são indevidamente atacadas por meio de ofensas pessoais, calúnias ou imputações falsas.”
Na nota, o advogados de Ednaldo ainda criticam o que chamam de “vitimização” dos jornalistas. “Quando um cidadão processa um jornalista, começa um rosário de vitimizações, com esse discurso de intimidação, de franciscana pobreza interpretativa”. Leia aqui a resposta completa do presidente da CBF.
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