Ativistas brasileiros pela liberdade na internet estão nervosos. Nesta quarta-feira, uma comissão na Câmara dos Deputados vai pôr em votação sete projetos de lei criados ostensivamente para combater crimes cibernéticos. Enquanto isso, críticos alegam que o efeito combinado dessas propostas irá restringir substancialmente o acesso amplo à internet no país, retirando o direito ao anonimato e dando poderes excessivos aos órgãos do governo para censurar o discurso na rede e ter acesso aos dados pessoais dos cidadãos sem aprovação judicial.
Os projetos vieram de algo que já se tornou uma cartilha padronizada: propor legislação contra crimes cibernéticos; alegar o combate à pornografia infantil, hackers, crime organizado e até mesmo terrorismo; e então vincular medidas que também facilitam a identificação de vozes críticas na internet (muitas vezes sem permissão judicial) e silenciá-las ou prendê-las por difamação – ameaças diretas à liberdade de expressão.
Paquistão, Nigéria, México, Kuwait, Quênia, Filipinas, Peru, Emirados Árabes e Qatar tiveram propostas similares recentemente. Algumas delas encontraram forte resistência e foram arquivadas, algumas ainda estão pendentes e outras foram transformadas em leis.
“O cybercrime é um dos pretextos recorrentes para a criação de leis que impõem controles sobre a atividade na internet”, escreveu Katitza Rodriguez, Diretora de Direito Internacional da Electronic Frontier Foundation (Fundação da Fronteira Eletrônica), em um e-mail para o The Intercept.
No Brasil, os projetos de lei são o resultado de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) de crimes cibernéticos que durou nove meses, chamada de CPICiber, instaurada em julho de 2015 pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, a pedido de um deputado do partido governista da presidente Dilma Rousseff, PT. A primeira versão do relatório da CPI, lançada em 30 de março, provocou uma resposta massivamente negativa de grupos da sociedade civil.
A imprensa brasileira não deu muita cobertura a essa história – os repórteres estão ocupados com uma crise política que já dura meses e envolve toda a nação – mas a Folha de São Paulo, um dos maiores jornais do país, publicou um editorial no sábado defendendo que os projetos de lei utilizam o “pretexto de aumentar a segurança” online, “aumentarão o poder de censura sobre a rede e diminuirão a privacidade do usuário”. De acordo com a Folha, as “suas disposições atacam pilares do Marco Civil da Internet, diploma aprovado em 2014 que colocou o Brasil na vanguarda do tema”. dos direitos na internet. O jornal concluiu que “esse é o tipo de controle usado por países como China e Irã”.
Um projeto de lei particularmente controverso poderia solicitar que redes sociais removam conteúdo considerado “ofensivo à honra” de políticos em um prazo de 48h a partir do recebimento da notificação oficial. Após desaprovação pública, esse trecho foi removido da segunda versão do relatório da CPI, mas restam outros projetos de lei que forçariam empresas a retirar conteúdo proibido gerado por usuários, incluindo aqueles considerados “crimes contra a honra e outras injúrias”, sem uma única ordem judicial.
O relatório da CPICiber contem sete projetos de lei (com 20 sugestões específicas em todos). Dentre suas disposições, eles podem:
- Permitir que serviços que utilizam internet (como WhatsApp ou Facebook) sejam unilateralmente bloqueados por ordem judicial, uma violação da neutralidade da rede. (Isso de fato aconteceu em dezembro do ano passado, quando um juiz bloqueou o acesso ao WhatsApp no país inteiro a fim de pressionar a empresa que controla o serviço, Facebook, a cooperar em uma investigação criminal.)
- Exigir que serviços da internet garantam à polícia e a outros órgãos o acesso, sem ordem judicial, ao endereço IP, o rastro específico deixado por um dispositivo na rede e que pode ser usado para identificar, localizar um usuário e revelar alguns dados do seu histórico de navegação.
- Desviar 10% de fundos públicos originalmente destinados ao desenvolvimento dos serviços de telecomunicações e infraestrutura, extremamente sucateados e caros para os cidadãos no país, para financiar estruturas governamentais de combate a crimes cibernéticos.
- Expandir a abrangência e as penalidades de leis que envolvem hacking e acesso não autorizado a dados, incluindo a criminalização do acesso impróprio que apresente “risco de uso indevido ou vazamento”, não importando se o uso indevido de fato ocorreu ou envolveu prática criminosa.
Gustavo Gus, co-fundador da CryptoRave, uma conferência hacker em São Paulo financiada coletivamente, acompanhou as audiências da CPICiber de perto. “As polícias judiciárias e as autoridades brasileiras não andam felizes com as respostas do Vale do Silício, pós-revelações do Snowden”, ele escreveu em um e-mail. “Desde a criação da CPI dos Cibercrimes, tem ocorrido uma grande pressão desses setores para ampliar a retenção de dados” e dar poder às autoridades para vigilância em massa, afirmou Gus.
Vários grupos da sociedade civil têm sugerido alterações desde que a primeira versão do relatório foi publicada. Agora, a terceira versão está prestes a ser revelada e entrará em votação na quarta-feira. Se for aprovada, ela será votada no plenário da Câmara e, se passar, irá para o Senado.“Estamos tentando um diálogo entendendo que vai sair uma versão final do relatório e temos que tentar trabalhar em conjunto para melhorá-lo”, disse Joana Varon, diretora da Coding Rights, um grupo que promove direitos humanos na arena digital, ao The Intercept. “Mas muitas vezes nossa proposta é: ‘por favor, abandonem essa ideia’”.
Em um comunicado enviado por email para o The Intercept, a presidente da comissão, Dep. Mariana Carvalho, escreveu:
[Eu] considero precipitadas e injustas as críticas levantadas contra os trabalhos da CPI.
O texto ainda está em construção, tendo recebido profundas contribuições de estudiosos, provedores e organismos representativos dos diversos setores da tecnologia, inclusive das americanas Eletronic Frontier Foundation e Information Technology Industry Council e ainda da Associação Latino-Americana de Internet.
[…]
As iniciativas constantes do relatório da CPI são voltadas principalmente a emprestar mais agilidade, efetividade e segurança (registro) no combate dos crimes praticados no mundo virtual.
Ou seja, as medidas não influenciam a navegação pelas pessoas, das páginas de seu interesse nem as impedem de usar os aplicativos de sua preferência, como o Facebook, WhatsApp, Instagram [e] Snapchat.
Quartenta e oito grupos da sociedade civil e de organizações acadêmicas como Electronic Frontier Foundation, Artigo 19, Access Now, Intervozes e Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro se juntaram ao Coding Rights para combater a legislação proposta. Em uma carta aos membros da CPICiber, Tim Berners-Lee, inventor da World Wide Web, afirmou estar “entristecido” pelo pacote de medidas, dizendo também que “permitir que órgãos do governo identifiquem pessoas associadas a endereços de IP sem garantias ameaçaria a privacidade online – criando um efeito paralisante da liberdade de expressão, e com efeitos colaterais na economia e na democracia”.
O deputado Daniel Coelho, um dos membros da CPICiber, refutou duramente esses argumentos. Em um post no Twitter, o deputado respondeu a um artigo entitulado “Políticos querem censurar a internet no Brasil com o pretexto de combater o ‘cybercrime’”, dizendo: “que mentira mais absurda essa matéria. Nada disso existe”.
Para Varon e muitos de seus colegas, os projetos de lei da CPICiber são especialmente difíceis de aceitar após anos de trabalho conjunto com autoridades governamentais para criar o Marco Civil da Internet, uma peça inovadora de legislação que Varon chama de “Carta Magna da internet”. Ele fornece uma estrutura regulatória clara e traça uma série de direitos digitais para todos os brasileiros, incluindo o direito ao acesso à banda larga de baixo custo e o direito à liberdade de expressão. O Marco foi desenvolvido por meio de um diálogo aberto e inclusivo.
O Marco foi internacionalmente elogiado por defensores da liberdade na internet, apesar de algumas sérias ressalvas sobre pontos como retenção de registros de atividades dos usuários por provedores de serviços. Desde então, componentes da classe política têm tentado incluir modificações nos direitos recém-estabelecidos.
O relatório da CPICiber é “fruto de uma onda conservadora forte que tomou nossa Câmara dos Deputados”, diz Varon. “E aí essa onda aplicada na internet vai resultar mesmo em censura e vigilância. São retrocessos”.
No ano passado, uma controversa lei antiterrorismo foi aprovada por uma presidente que já foi presa por ser considerada “terrorista” durante o regime militar. Além disso, um projeto de lei discutido no final do ano passado, que possibilitaria espionagem digital doméstico, está esperando para ser desarquivado.
Katitza Rodrigues, da EFF, faz um alerta: “Uma vez que uma lei nociva é adotada em um país, ela pode se espalhar por outros países, em um efeito dominó. Combine isso com a frustração de governos ao redor do mundo com sua incapacidade de controlar serviços encriptados de comunicação e você cria um ambiente em que todo país se sente no direito de bloquear não apenas sites, mas serviços inteiros”.
Varon também está preocupada. Ela vê o debate sobre a cibersegurança sendo “liderado por uma visão conservadora,” e afirma que “o problema é se a gente sair criminalizando tudo, sair dizendo que somos todos terroristas, encaixar práticas comuns e criminalizar essas práticas por não entender como que é a internet funciona. É problemático”.
Traduzido por: Beatriz Felix
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