Quando o primeiro brasileiro subiu ao pódio nesta Olimpíada, ela estava ali: a continência. O gesto – que quase foi banido dos jogos por contrariar a regra 50 da carta olímpica – é uma espécie de agradecimento ao suporte financeiro e estrutural que as forças armadas estão dando aos atletas da delegação brasileira.
Desde sua criação, em 2008, o Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR), do Ministério da Defesa, injetou aproximadamente R$126 milhões em atletas nacionais. O apoio se converteu em nove medalhas, das 11 conquistadas pela delegação nos doze primeiros dias de Olimpíadas. A meta dos militares é chegar a dez pódios até o fim dos Jogos. Para 2017, já está assegurado o repasse anual de R$ 18 milhões. Programa similar criado pelo Ministério do Esporte, o Bolsa Pódio foi lançado em 2011 visando especificamente atletas com chances de medalha. Foram investidos mais de R$ 60 milhões em 318 atletas desde 2013.
Com o PAAR, a torcida brasileira viu subir de 51, em Londres 2012, para 145 o número de atletas militares. O programa não é criação nacional. Atrás da equipe brasileira ficam, em ordem, a da Alemanha, com 131 atletas militares, e a da Itália, com 125 –dois países que já passaram por governos totalitários e altamente militarizados.
“O principal interesse do Estado em esporte de alto rendimento reside no potencial de melhorar sua reputação internacional.”
Em seus livros, o professor de administração e política esportiva Mick Green, da Universidade de Loughborough, na Inglaterra, analisa as estratégias adotadas por diferentes nações. Ele explica que a União Soviética e a Alemanha Oriental financiavam seus atletas indiretamente através das forças armadas em um modelo semelhante ao brasileiro.“O principal interesse do Estado em esporte de alto rendimento reside no potencial de melhorar sua reputação internacional. Isso é demonstrado, em particular, pelo fato de que os esportes olímpicos mais prestigiados recebem prioridade em relação a outros esportes em termos de suporte estatal”, explica Green em “Comparação do desenvolvimento de Esportes de Elite”.
O diretor do Departamento de Desporto Militar do Ministério da Defesa, almirante Paulo Zuccaro, confirma que o PAAR foi criado “seguindo exemplos das Forças Armadas de diversos países, principalmente Alemanha, França, China, Rússia e Itália, que possuem programa semelhante”. Ele também conta que foram escolhidas 27 modalidades para o investimento.
O pesquisador alemão Helmut Digel, da Universidade de Tübingen, na Alemanha, em seu estudo “Comparação de sistemas esportivos de sucesso” explica que, na Alemanha e na Rússia, as forças armadas “possuem instituições esportivas especiais de alta performance, que oferecem a atletas de alto nível as condições ideais de competir. O mesmo acontece para a França, particularmente em esportes de inverno”. Entre outras nações que também utilizam muito de seu aparato militar em auxílio do esporte, Digel dá atenção em especial a China, Japão e Coreia do Sul, todos com histórico recente de totalitarismo.
“Conceitos como ufanismo e disciplina são comuns aos militares e aos esportistas de alto rendimento.”
Em entrevista a The Intercept Brasil, o professor José Renato Araújo, que leciona gestão de políticas públicas na Universidade de São Paulo (USP), disse acreditar que não se trata de algo relacionado ao autoritarismo, mas sim ao nacionalismo. “Acontece em nações totalitárias ou não. Na Guerra Fria, esporte e militarismo eram quase sinônimos para os dois lados. Historicamente as forças armadas estão ligadas à educação física. Conceitos como ufanismo e disciplina são comuns aos militares e aos esportistas de alto rendimento. A primeira escola de educação física do país é militar, por exemplo. Parece-me que aqui o objetivo é elevar o nome do Brasil no exterior. A questão é: no momento em que vivemos, de crise econômica e política, é prioritária a projeção da imagem do país no exterior?”
Além da imagem do Brasil, a própria imagem das Forças Armadas é alçada ao ser ilustrada por casos de superação e vitória. Mesmo em países onde não há programas de recrutamento de atletas, o esporte continua sendo um meio de propaganda militar. Nos Estados Unidos, eventos esportivos tornam-se um momento de exaltação das Forças Nacionais com jatos sobrevoando estádios e veteranos sendo exaltados nos telões.Essas ações acontecem porque, apesar de haver quem propague o esporte como algo apolítico, esporte é política sim. Não à toa, as continências e placas de manifestações causaram controvérsia desde o início dos Jogos.
Durante a ditadura militar, por exemplo, os governos de Costa e Silva e, posteriormente, de Médici tentaram aproximar a figura do presidente à seleção brasileira de futebol, a ponto de Médici comemorar o milésimo gol de Pelé com desfile em Brasília, medalha de mérito nacional e título de comendador para o jogador.
A alta brasileira no número de atletas militares é reflexo não apenas do programa das forças armadas, mas também do fato de ser o país sede, o que garante mais vagas na competição. Por isso, se em números totais, o Brasil é o que mais levou militares aos jogos, quando o critério do ranking é mudado para proporção, cai para o oitavo lugar, com 29,9%. Na mesma faixa encontram-se nações como Síria (28,6%) e a Namíbia (30%).
“Para os atletas foi um meio de receber um rendimento financeiro permanente e digno para manter seus treinamentos e participação em competições.”
O professor Fernando Starepravo, do departamento de Educação Física da Universidade Estadual de Maringá (UEM), também especialista em políticas públicas, explica que a reaproximação entre esportes e forças armadas no Brasil se deu, inicialmente, como uma estratégia para ter bons resultados nos V Jogos Mundiais Militares, realizados no Rio de Janeiro em 2011. Com o resultado extremamente significativo – o Brasil pulou da 33 colocação para a primeira –, a estratégia foi mantida para os Jogos Olímpicos.
“Para os militares representou maior visibilidade das forças armadas no país e um bom desempenho do esporte militar a nível internacional. Para os atletas foi um meio de receber um rendimento financeiro permanente e digno para manter seus treinamentos e participação em competições. E para o governo federal foi um meio de atender as demandas de apoio aos atletas olímpicos, visando uma melhoria do país no quadro de medalhas olímpico”, avalia Starepravo
Tornando-se referência entre toda a delegação, aqueles que não foram agraciados passaram a reivindicar a ajuda. Nos primeiros dias dos Jogos do Rio de Janeiro, o atleta Roberto Schmits, do tiro ao prato, desabafou ao sair da prova em 15º lugar: “Eu saio de casa para trabalhar. O tiro ao prato não é militar. Poderia ser, mas não é. Desde setembro minha família é baseada na renda da minha esposa”.
Atualmente, 670 militares fazem parte do Programa Atletas de Alto Rendimento, mas apenas 76 – 11,3% – são militares de carreira
Os Estados Unidos também possuem um programa militar para esportes, o World Class Athlete Program (WCAP). No entanto, o programa, criado em 1948, segue o fluxo completamente oposto ao modelo adotado por Alemanha, Rússia e Brasil. “Em vez de recrutar atletas, ele dá a oportunidade a soldados para treinar e demonstrar que ele ou ela já atingiu um status de elite. No entanto, sua principal responsabilidade é militar”, explica o especialista britânico Mick Green em seu estudo. Ou seja, caso sejam convocados, devem parar de treinar para servir, o que não acontece com os brasileiros.
Atualmente, 670 militares fazem parte do Programa Atletas de Alto Rendimento, mas apenas 76 são militares de carreira. Os outros 594 são temporários. O período máximo de serviço para militares temporários é de oito anos, renováveis, ou não, a cada 12 meses.
Essa espécie de patente temporária foi o alvo de reclamações do técnico Marcos Goto, que orienta o ginasta Arthur Zanetti, militar há apenas um mês. “Eles não treinam lá, são apenas contratados por eles. Quem dá treino para os atletas sou eu, não os militares”, criticou o técnico após seu atleta, que é Sargento da Força Aérea, prestar continência no pódio.Os atletas são selecionados por seu desempenho em competições nacionais e internacionais, depois frequentam um Estágio de Habilitação para Praças por 45 dias. Neste treinamento, constam disciplinas sobre prestação do serviço militar, obrigações, direitos e deveres do militar, conduta sobre uniformes, postos e graduações, tiro e sobrevivência. Em paralelo, podem continuar treinando e competindo por seus clubes enquanto recebem todos os benefícios da carreira, como soldo de cerca de R$ 3 mil, 13º salário, plano de saúde, férias, direito à assistência médica, incluindo nutricionista e fisioterapeuta, além de disporem de todas as instalações esportivas militares.
O sargento da Força Aérea Zanetti, por exemplo, treina desde os sete anos na Associação de Ginástica di Thiene, criada em 1993 por uma organização de pais e professores em São Caetano do Sul (SP). Já o sargento do Exército Felipe Wu treinava em casa, em São Paulo, até o ano passado, alternando com viagens aos fins de semana Clube de Campo Santa Mônica, em Curitiba (PR). A menos de um ano dos jogos, no final de setembro, foi convidado para treinar no Clube Hebraica, em São Paulo. Ambos respondem às Comissões de Desporto de suas respectivas instituições, à distância.
Segundo o almirante Zuccaro, “a profissão deles é ser atleta, assim como a Marinha, o Exército e a Aeronáutica têm médicos, advogados e dentistas”. A diferença é que médicos, advogados e dentistas são pessoas necessárias a qualquer Força Armada, com funções diretamente ligadas ao trabalho militar, principalmente em momentos de confronto. Já um atleta de vôlei de praia, por exemplo, qual seria sua função, além de propaganda?
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