Nas pouco valorizadas galerias do Senado, um local onde ninguém jamais imaginou que ele estaria algum dia na sua carreira política, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva passava a mão pelo bigode com expressão séria. Ao seu lado, estava Chico Buarque. Em comum entre os dois, a maestria no uso das palavras. Tive a oportunidade de acompanhar presencialmente uma série de discursos de Lula, e ele certamente faria melhor que Dilma Rousseff, à frente dele, na prestigiosa tribuna do Senado Federal.
Dilma buscou falar para a História. Certamente conseguiu. Seu discurso estará na íntegra amanhã em todos os jornais e eternizado no Youtube. Em breve, estará em destaque, com edição emocional, nos documentários que estão sendo gravados sobre esse processo de impeachment.
Mas a História, essa com H maiúsculo, é complexa.
A presidente foi ao Senado hoje bem menos ingênua do que era quando, apesar do aprendizado forçado de todas as torturas e dissabores enfrentados na ditadura militar, aceitou ter Michel Temer, o grande cacique do PMDB, como seu vice nas eleições de 2010.
Ali, Dilma, novata em eleições, mas experiente na máquina pública, começou a ceder. Pode não ter percebido totalmente, mas estava começando a jogar as regras do jogo, em que é essencial ter apoio parlamentar e tempo de televisão numa disputa presidencial. E as regras não foram decididas por ela, nem por Temer, nem por Lula. As regras vêm de longe. A política do toma-lá-dá-cá impera no Brasil há tempos. Dilma acabou sendo engolida por essa política que a fez ser, por cinco anos e meio, presidente de 200 milhões de brasileiros, a primeira mulher a ocupar esse cargo.
Hoje, em seu discurso, em um dos momentos mais fortes de um texto que, em sua maior parte, repetiu ideias já declaradas em entrevistas, ela fez referência justamente a essa cláusula pétrea do jogo político do país, incapaz de ser alterada por qualquer reforma política – até porque quem faz a reforma são os que jogam e crescem com essas regras. Disse a presidente aos seus julgadores no Senado:
“Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade, com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente. Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito não tem respeitabilidade para governar o país”.
A afirmação é formalmente correta, mas não se pode negar que Dilma – e também Lula, claro – chegou à Presidência por ter se aliado a esses mesmos atores. Eduardo Cunha era um defensor do governo dela e de Lula, até que teve seus interesses contrariados. Renan Calheiros, idem. Romero Jucá liderou todos os governos. Fernando Collor até hoje é visto como alguém em quem se confiar. Kátia Abreu, rainha do agronegócio e detratora das regras ambientais mais rígidas, virou amiga pessoal de Dilma.
A presidente também afirmou aos senadores que, “se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam”.
Ao ceder ministérios para partidos A, B e C, Dilma negociou benesses. Claro que não em forma de propina, mas como moeda de troca para apoio parlamentar. A presidente só desistiu desse caminho depois de o barco ter naufragado. Ele estava cheio de ratos, e Dilma sabia disso. Aceitou o risco, achando, quem sabe, que seria capaz de espantar todos. Não deu. Os ratos tomaram conta do barco.Um discurso bem maior para a história teria sido numa renúncia diante de um inconformismo com as regras do jogo que acabaram dominando seu governo – e que foram jogadas livre a abertamente por muitos dos que hoje defendem a presidente no Senado. Dilma está muito perto da aposentadoria. Olhando daqui posso garantir que ela será, no seu exílio em Porto Alegre, bem mais feliz do que foi tendo que absorver a dura realidade de que ser totalmente correta é impossível na política brasileira quando se está em altos cargos.
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