Rio de Janeiro, 4 de setembro, mais um domingo no Complexo da Maré, maior conglomerado de favelas carioca. Na rua principal da favela Nova Holanda, lacre, tombamento, batalha de close e resistência na 4° Parada do Orgulho LGBT na comunidade.
Seria só mais uma festa na cidade que acaba de sediar a Olimpíada mais LGBT da história e de receber o título de melhor cidade praia gay da América Latina, mas não era apenas isso. Aparentemente, o Rio é um ótimo destino gay friendly dentro de um país que, em teoria, respeita a diversidade. No entanto, dados de crimes de LGBtofobia, como os do Grupo Gay da Bahia (GGB), que revelam que, a cada 27 horas, um homicídio de LGBT acontece no Brasil, desconstroem esse cenário ideal. A parada nas ruas da favela, na verdade, é a arma na luta diária por respeito e visibilidade.
Em meio à festa, com a participação da comunidade, com famílias e crianças se divertindo, é possível esquecer que o preconceito diário existe na cidade e no país. É como se houvesse uma ampla aceitação da diversidade. Mas os últimos números divulgados pelos Centros de Cidadania LGBT do Rio Sem Homofobia dão conta de quase 1.300 casos de violência contra gays, lésbicas, travestis e transexuais no estado do Rio em 2014, registrados em apenas quatro centros de atendimento – o que leva a uma média de 3,54 casos de crime de ódio por dia.
“A violência contra a população LGBT é maior nas regiões periféricas. Não somente no Rio de Janeiro, mas no mundo de uma forma geral.”
Ao menos cinco casos de violência LGBTfóbica são registrados todos os dias nacionalmente através de denúncias do Disque Direitos Humanos (Disque 100, Ouvidoria do SUS e a da Ouvidoria da Secretária de Políticas para Mulheres), de acordo com o Relatório de Violência Homofóbica no Brasil 2016.
Os índices de mortes violentas por LGBTfobia são altos. De acordo com o estudo do GGB, em 2015, foram registrados 318 óbitos em 187 cidades do país. Os números tornam o Brasil uma referência negativa. O que é confirmado na pesquisa da rede europeia Transgender Europe, que aponta o Brasil como o país que mais mata transexuais no mundo.
Apesar de impactantes, os números podem ser ainda mais graves, pois muitos casos não são denunciados ou qualificados como LGBTfobia.
“Os dados recolhidos pelo serviço Disque 100 LGBT, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, estão em consonância com as denúncias informadas pelo GGB. Não tipificar esse crime de ódio envia uma mensagem à sociedade de que a violência contra a população sexo diversa é tolerada e aceita, o que permite que esses crimes aconteçam e, o que é pior, que o índice e a frequência aumentem”, explica Henrique Rabello de Carvalho, vice Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB-RJ.
No caso do Rio de Janeiro, que há pouco tempo recebeu atletas LGBT de braços abertos, a previsão do advogado parece se confirmar já para próximo ano. Pelos números do GGB, o estado registrou 12 mortos em 2015. Neste ano, em apenas cinco dias do mês de junho, seis homicídios foram registrados nas periferias da região metropolitana. No mês seguinte, um crime na Universidade Federal do Rio de Janeiro revelou um sequência de ameaças a gays e negros na universidade. Diego Vieira, estudante paraense, negro e gay, de 29 anos, foi encontrado nu da cintura para baixo e com sinais de espancamento, após receber ameaças anônimas.
“Observa-se que a violência contra a população LGBT é maior nas regiões periféricas, e essa hoje é uma das grandes frentes de luta para os defensores da diversidade sexual, não somente no Rio de Janeiro, mas no mundo de uma forma geral”, afirma Carvalho.
Num texto sobre a “epidemia de violência antigay” em julho deste ano, o New York Times destacou a atuação de religiosos no Congresso Nacional, como Eduardo Cunha e Marco Feliciano, que impendem o andamento de leis que transformam a LGBTfobia em crime. Cunha, então presidente da Câmera dos Deputados, chegou a propor o dia do Orgulho Hetero; Feliciano é defensor da cura gay. A matéria só esqueceu de citar Jair Bolsonaro, parlamentar que luta contra ideologia de gênero e já se envolveu em uma série de polêmicas com LGBT, mulheres e negros. No Rio de Janeiro, o filho do deputado, Flávio Bolsonaro, concorre à prefeitura e afirmou que a Parada LGBT não receberá verbas municipais caso seja eleito.
“O LGBT da favela luta por sobreviver.”
Do outro lado dos números negativos, está o movimento LGBT, com ações como a Parada do Orgulho LGBT na Maré, expondo suas pautas. “Eu acredito na transformação social. A sociedade precisa ser trabalhada cotidianamente”, afirma Michele Seixas, 30 anos, que faz parte do corpo diretor do Grupo Conexão G, que organiza o evento na Nova Holanda. Para ela, os eventos podem fazer com que a sociedade toda consiga enxergar o gay, a lésbica e as transexuais como pessoas comuns.
Seguindo a Avenida Brasil, a menos de dois quilômetros de distância, existe outra Parada LGBT, na Vila do João, organizada pelo grupo Maré Sem Preconceito, a 9º edição acontece no dia 11 de setembro. Eventos semelhantes acontecem na Cidade de Deus, na Zona Oeste, e em municípios da Região Metropolitana como Mesquita, Nova Iguaçu e Duque de Caxias. Além da famosa parada na praia de Copacabana. “Essa descentralização é importante, porque cada lugar tem suas especificidades. A de Copacabana é a que leva mais pessoas, mas é necessário que aconteça nas favelas e subúrbios, porque o morador que não tem acesso à orla vai na sua comunidade. É uma forma de fortalecimento para o movimento”, explica Seixas.
O produtor cultural, Iury de Carvalho Lobo, 23 anos, morador da Maré há dois anos e meio, destaca que existe uma diferença de luta. “O LGBT da favela luta por sobreviver. Enquanto o LGBT de fora da favela tem uma preocupação com leis e direitos, que, claro que nós também temos, mas o nosso primeiro direito, que é muitas vezes infligido, é o de viver bem, o de ir e vir tranquilamente”.
Os trabalhos dentro da comunidade modificaram o cenário. “Hoje em dia, existe um olhar um pouco diferente com as lutas, com as causas, com os projetos sociais e pela resistências dos LGBT esse cenário tem mudando”, explica Lobo. “Os gays, as lésbicas e as travestis da Maré por estarem na luta há mais tempo, por entenderem as razões sociais que movem os preconceitos, brigam mais. Existe uma resistência, não é uma aceitação. Por conta dessa resistência, a gente acaba sendo engolido com mais facilidade que em outros lugares.”
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