Eduardo Cunha experimentou da mesma queda que ele provocou a Dilma Roussef há poucos dias. Sua ascensão e queda se assemelham a uma história de via crucis real.
Em meses, a Câmara dos Deputados se converteu numa espécie de templo onde o poder de Cunha não era desafiado, apenas temido. Cunha surgiu do deserto da política para a posição de messias, o salvador do conservadorismo de direita que reivindica para si o lugar de ser o caminho, a verdade e a vida: sem ele apontar o caminho, nada se aprovava ou entrava em pauta; manipulava votações para que fossem como ele as queria, moldando a verdade da ordem do dia, e a vida do Parlamento girava em torno da sua condução. Fora de sua autoridade, qualquer pauta, medida provisória ou projeto de lei morria.
Não juntou sobre ele apenas 12 discípulos. Juntou centenas. Seu poder extraordinário beneficiou a todos que andavam ao seu redor e, com esses poderes, desafiou o “Império Romano Petista”. Parte dele vinha de sua filiação religiosa. Evangélico, defensor dos “valores da família” e dos “princípios cristãos”, a força de Cunha era exigida toda vez que uma pauta mais “progressista” dependia de aprovação no Congresso. Não apenas isso, ele mesmo fez questão de que as pautas fossem colocadas, para derrubá-las de vez ou forçar sua aprovação segundo seus interesses, como a Redução da Maioridade Penal, o Estatuto da Família e as tentativas de revogar o Estatuto do Desarmamento. O lastro que o sustenta envolve religião, fisiologismo e um profundo aparelhamento conservador. Não à toa, figuras bizarras como Marco Feliciano, pastor, ficaram ao seu lado até o fim.
Mas o fato é que, politicamente, Cunha se tornou um leproso, e, como nos tempos de Jesus, leprosos são intocáveis, pessoas que deveriam ser colocadas para fora do convívio com a comunidade devido ao risco de contaminação. Sem pestanejar, os discípulos (ou séquito) de Cunha o negaram três vezes. Antes de o galo cantar, trataram de dizer que não o conheciam, que já havia tempo a foto e o momento em que eles abraçavam felizes ao novo presidente da Câmara e deslizavam elogios confessionais para ele devido à coragem de tocar o processo de impeachment contra Dilma Roussef.
Em meio às disputas intermináveis, todos queriam poder, e Cunha tinha muito só para si.
A via crucis de Eduardo Cunha durou 11 cansativos meses. Longo período em que ele não apenas carregou a sua cruz, como foi vendo gradativamente aqueles que o foram abandonando no caminho deixá-lo arrasta-la até o fim sozinho. No fim, tudo que lhe restou como companhia nessa travessia foi um combalido, histérico e folclórico Carlos Marun (PMDB-RS), que tentou, indignado, impedir a destituição do seu mestre. Marun se converteu numa espécie de apóstolo Pedro, que puxa a espada para desafiar os guardas que vieram prender Jesus.
Por fim, trataram de crucificá-lo. Com uma votação de 450 a 10, o poderoso presidente da Câmara dos Deputados chegou ao fim, num misto de complô e queima de arquivo, por mais que insistam em nos fazer acreditar que tenha sido principalmente pela pressão popular. De fato tivemos muita, e isso foi impressionante – e um alerta para muitos parlamentares na mesma condição que ele. Mas eles sabem se blindar contra a pressão popular, e a mídia contribui quando quer. Eduardo Cunha caiu por causa da sua lepra, se tornou um peso, indesejado, não havia quem o sustentasse. Em meio às disputas intermináveis, todos queriam poder, e Cunha tinha muito só para si. Assim como rasgaram e dividiram as vestes de Jesus em sua crucificação, o outrora séquito de Cunha rasga suas vestes e divide seus espólios.
O DEM foi o primeiro a abocanhar sua parte. A vitória de Rodrigo Maia fortalece o partido e fortalece o governo, de quem Rodrigo era a aposta. Cunha, que transformou a cadeira de presidência da Câmara num trono poderoso do qual não abria mão, viu o DEM, com Rodrigo Maia, como ave de rapina, levar o seu posto de estimação em uma vitória considerável, que foi o primeiro grande sinal do enfraquecimento do parlamentar cassado. E isso está, obviamente, conectado com ao Senado, trazendo para a Câmara dos deputados a influência e a maior capacidade de atuação de Ronaldo Caiado e Agripino Maia, incansáveis detratores e algozes dos últimos momentos de Dilma Roussef na sua tentativa de sobreviver no Planalto.
O PMDB “dissidente de Cunha” também leva sua parte. É a consolidação de uma vitória que mostrou seu esboço no início do ano com a vitória de Leonardo Picciani como líder da bancada do partido, vencendo, por 37 votos a 30, o candidato Hugo Mota, que era patrocinado por Cunha. Em um poço estranhíssimo de contradição, o PMDB disputou entre si, o tempo todo, o abandono e a adesão a Cunha. Dissidentes do governo Dilma, surfaram no poder do ex-presidente da Câmara para que ele a tratorasse em todas as tentativas de pautar o Legislativo.
No virar da maré, mediante a tempestade que pairava sobre Cunha, o campo do PMDB que lhe era hostil, mas engolia os seus sapos, foi despudoradamente pleitear o que restou do seu poder para dividir entre eles. Permaneceu ao redor de Rodrigo Maia, para garantir que a influência de Cunha desaparecesse de vez e sua capacidade de barganha perdesse o seu principal instrumento de negociação – a saber, a presidência da Câmara. Livres do poder de Cunha, o partido votou em massa a favor de sua cassação e o entregou de vez à própria sorte.
Constrangido, o PSDB sabe que saiu enfraquecido de todo o processo em que agiu de maneira dúbia e quase sem grande capacidade de articulação política, mas quando percebeu a derrocada de Cunha também abandonou o barco e resolveu ficar com alguma migalha do poder de outrora, se aproximando de Rodrigo Maia e demonstrando que acompanharia de perto o novo presidente da casa.
A crucificação e morte de Cunha não significam nada de mudança na onda conservadora.
Antonio Imbassahy, Carlos Sampaio, Domingos Sávio e companhia, tão atuantes e implacáveis pelo impeachment de Dilma, mas também, deve-se dizer, pelo afastamento de Cunha da presidência da Câmara, tiveram de lidar com um constrangedor lugar coadjuvante no jogo político em que eles não conseguiram manter força e capacidade de barganha. O PSDB não conseguiu colocar medo em ninguém e não leva muito desse poder de Cunha. Por isso mesmo, preferiu se adiantar em ficar por perto de quem herdou a maior fatia desse poder.
O poder religioso de Cunha também está em disputa. A Bancada Evangélica sabe, por exemplo, que será preciso negociar mais com Rodrigo Maia determinadas pautas que eram certas com Cunha. Porque Cunha era inflexível nos seus posicionamentos, que dizia serem orientados pelos valores cristãos. Com Cunha no poder, deputados como João Campos (PSDB-GO), que é presidente da Bancada Evangélica, tinham trânsito livre e influência total para sugerir e ter a prioridade em pautas de fundo religioso-conservador, como a proposta conhecida como “Cura Gay” e a tentativa de fazer com que igrejas tivessem o poder de questionar o Supremo Tribunal Federal, colocando-as no mesmo patamar de instituições como a Presidência da República, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB, entre outras. Com Cunha, o Legislativo garantiu o artigo, em Medida Provisória, que isentava as igrejas de pagar impostos sobre repasses feitos a pastores e líderes religiosos.
A crucificação e morte de Cunha não significam nada de mudança na onda conservadora que permanece varrendo o país com força total via Executivo-Legislativo. Na verdade, só demonstra que essa onda é tão violenta que eles vão se destruindo entre eles mesmos e dividindo entre si o poder que oprime o lado de baixo.
Só nos resta pensar sobre a sua capacidade de ressurreição ao terceiro dia. É verdade que Cunha ficou inelegível, mas, como no Brasil o poder não se perde com o fim de um cargo, com o fim de um mandato, há de se esperar para ver se ele se mantém na “morte política” e em que momento e como ressuscitaria. Com o seu poder sendo dividido e disputado por tantos e de tantas maneiras, é preciso estar atento. Às vezes, a paixão é uma história dolorosa, triste, que impressiona e comove. Mas às vezes a paixão é também apenas uma encenação. Uma via crucis muito bem ensaiada, de roteiro muito bem definido, que quase parece real.
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