Sequestros feitos por policiais, ruas e túneis fechados, fachadas de condomínios de luxo perfuradas de balas, ônibus apedrejados, disputas entre facções, corpos esquartejados nas ruas. Rio 2006 ou Rio 2016? Os cenários são muito parecidos com os de antes de janeiro de 2007, quando José Mariano Beltrame tomou posse como secretário de Segurança do Rio de Janeiro, e agora, quando o 01 pede pra sair. Com o pedido de demissão de Beltrame, Roberto Sá, até então subsecretário, assume o posto na próxima segunda-feira, 17.
Ao longo desses 10 anos em que o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nasceu, cresceu e morreu, governantes se reelegeram, comandantes de UPP ganharam prêmios de direitos humanos enquanto Amarildo sumia, o governo exportou o modelo para outros estados e países, Beltrame repetiu discursos descolados de suas ações incansáveis vezes.
Ele se despediu do cargo repetindo que as “UPPs salvaram muitas vidas“, mas não comentou sobre outras informações que tiveram impacto direto sobre esse dado.
Em 2011, um alerta: dados repassados pelo SUS do Estado do Rio ao Ministério da Saúde apontaram uma queda de 22,2% nos homicídios entre 2008 e 2009. Mas também mostram um aumento expressivo de 73,2% nas mortes por causas externas sem intenção determinada — ou seja, quando não se sabe (ou prefere não confirmar) se foi homicídio, suicídio ou acidente. Esse tipo de morte começou a aumentar em 2007, quando foram registradas 3.191 ocorrências, quase o dobro de 2006. No ano seguinte, continuou subindo. Coincidentemente, com esse aumento, houve uma queda acentuada nas mortes registradas como homicídios: 11,3% de 2006 para 2007.No mesmo ano, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que o Estado do Rio de Janeiro “ocultou” em suas estatísticas 3.165 homicídios apenas no ano de 2009. Beltrame bateu o pé, mas depois reconheceu o “valor” da pesquisa e defendeu maior comunicação entre o Instituto de Segurança Pública (ISP) e Datasus. Um ano depois o ISP fez uma parceria com a Secretaria de Saúde para acertar o passo nas informações.
Porém, em 2013, dados do ISP mostraram que houve aumento significativo no número de desaparecimentos nas 18 primeiras comunidades que receberam UPPs, entre 2007 e 2012: de 85 para 133. Em 2007 foram registrados 64 desaparecimentos nas áreas cobertas pelas Unidades, número que pulou para 119 em 2010. Em 2006 foram registrados 3.877 desaparecimentos em todo o estado. À época, especialistas viram relação direta entre queda de homicídios praticados por agentes do Estado e desaparecimentos em alta.
As estatísticas podem “cair” ainda mais.
Junto com Beltrame sai o 02, Fernando Veloso, chefe de Polícia Civil desde 2014. Antes de deixar o cargo, ele anunciou uma mudança de metodologia na contabilidade por bala perdida no Rio que reduziria os números em até 91%. Questionado sobre o potencial de distorção de números, a resposta foi bem objetiva: “Isso não me preocupa“.
Veloso assumiu o cargo um dia depois do episódio que foi um marco na queda das UPPs: a morte da PM Alda Castilho, atingida pelas costas, na UPP Parque Proletário, na Penha, “pacificada” em 2012. Além de Alda, outras três pessoas foram baleadas, incluindo outro policial militar. Ao assumir, já em meio à crise do programa, Veloso discursou: “Já identificamos os responsáveis, restabeleceremos o equilíbrio nas UPP’s”. Uma promessa nunca cumprida. Para além do marketing, quais as falhas das UPPs? Contratação de profissionais sem planejamento; falta de treinamento (sete meses, que agora serão dez); uso político da polícia; falta de condições de trabalho nas unidades, salário defasados e atrasados, etc. –Ah! Mas o Estado não entrava na favela! Agora entra!, diriam alguns desavisados. Entrava, sim: com a polícia, em operações e também para buscar o arrego e trabalhar com o tráfico. Como ainda faz. E antes das UPPs houve obras do PAC em algumas favelas cariocas, bem como UPAs, passarelas, teleféricos, etc. Portanto, esse bordão não se sustenta com um simples Google.
Mais do mesmo
No fim, as UPPs não passaram de uma reedição “à la Colômbia” de várias “novas ideias” de “policiamento comunitária” como o Centro Integrado de Policiamento Comunitário (CIPOC), de 1983, o Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE)nos anos 2000, e os Destacamentos de Policiamento Ostensivo (DPO), posteriormente conhecidos como Postos de Policiamento Comunitário (PPC). Ou seja, produto velho em embalagem nova. Cidadãos fluminenses pagaram caro por essa propaganda, e a ideia colou.
Houve uma chance de que as coisas dessem certo e que nem só a polícia chegasse à favela. A criação da UPP Social ( Rio + Social, atualmente), quase dois anos depois da instalação da primeira UPP, no Santa Marta, era uma possibilidade. Mas isso ficou para trás quando o “lado social das UPPs” foi rebaixado, passando à administração municipal em 2011. O poder político do programa foi reduzido ainda mais, ao ser abrigado dentro de uma autarquia e não uma secretaria. Depois de muitas emendas mal feitas, o programa acabou morrendo. Com isso, ficou claro: as favelas teriam polícia por polícia, como sempre foi. Como a embalagem era bonita, assim mesmo ganharam prêmio como um dos principais exemplos do mundo de promoção do bem-estar social de favelas, em 2014.
Por falta de planejamento e de interesse político, desperdiçamos a chance e estamos onde sempre estivemos: na estaca zero. E isso fica claro nas falas dos ex-chefes de polícia. Beltrame saiu dizendo que UPPs precisam ser reavaliadas e seus policiais realocados; Veloso sai dizendo que “A polícia não está conseguindo investigar o que é preciso” e que policiais trabalham em situação precária.
Já ouvimos isso antes muitas vezes. Os dois deixam os cargos com os mesmos problemas que encontraram. E fica claro que isso é um problema de vontade política. Se o Governo do Estado quisesse mesmo resolver problemas tinham ao menos levado em consideração tudo o que foi levantado na CPI das Armas e na CPI das Milícias, cujas recomendações não foram cumpridas. O desdém é tão claro que chegamos ao cúmulo de ter uma CPI das Armas II.
Nos últimos 40 dias houve batalha entre facções em seis favelas com UPP: Turano, Fallet, Fogueteiro, São Carlos, Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. Em setembro, houve ao menos 29 tiroteios em 18 favelas “pacificadas“. Quando o Governo do estado vai admitir que a UPP falhou? Talvez a saída de Beltrame seja a deixa perfeita.
A UPP é o único programa de segurança do tipo que a Secretaria de Segurança tem. Apesar dos belos discursos do ex-secretário sobre a política de drogas, o tom belicista do programa que ele geriu o desmentem. Vidas continuaram sendo perdidas em decorrência da absurda e sanguinária “guerra às drogas” — a que Beltrame disse ser contra.
Como sabemos que não há guerra contra coisas, a guerra é contra pessoas, um genocídio. Pessoas que, dos dois lados do front, têm o mesmo perfil: pobres, moradoras de bairros populares e majoritariamente negros, com baixa patente. Porque quem elaborou essa política, o fez no ar condicionado de um escritório lindo, aonde o sangue não chega. E quando chega, as coisas mudam.
Esse cenário pode ser alterado com o fim da proibição às drogas selecionadamente ilícitas, gestão e estatísticas transparentes e real vontade política para resolver o problema.
Ou fazemos isso ou o próximo secretário vai continuar a receber prêmios enquanto pessoas são mortas onde os holofotes nem sempre chegam.
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