Marcelo de Souza tem 41 anos de idade e mora na mesma casa no Horto, na Zona Sul do Rio de Janeiro, desde que nasceu. A casa pertence à sua família há décadas e passou de geração em geração. Marcelo, que trabalha com um pequeno buffet, mora na casa com sua esposa, Betânia, e seu filho de 15 anos, que assim como o pai, nunca morou em outro lugar.
Agora, assim como ocorre com dezenas de outras famílias do bairro, a casa que pertenceu à sua família por toda sua vida está sendo tomada sem qualquer forma de compensação. Eles não têm para onde ir. Enquanto o The Intercept Brasil encontrava-se na casa da família nesta manhã, a tropa de choque iniciava uma verdadeira guerra na rua, dispersando manifestantes com bombas de gás lacrimejante, spray de pimenta e balas de borracha.
O ocorrido levanta sérias questões sobre o tratamento dado aos mais pobres no Brasil – neste caso, a despeito de qualquer opinião sobre a expulsão, foi especialmente cruel. Também levanta questões sérias sobre o papel do Grupo Globo, proprietário dominante de imóveis na área, e como tal, um das maiores beneficiários da expulsão.
Quando os Souza se recusaram a sair, a Polícia Militar ameaçou usar spray de pimenta dentro da casa da família. Somente após essa ameaça, a família foi convencida a deixar a casa. Todos os seus pertences foram encaixotados para serem levados a um depósito público e a casa já está sendo demolida.
A ação de reintegração de posse ocorrida nesta manhã foi uma ação integrada da Polícia Militar, Polícia Federal e Ministério Público. A expulsão é parte de um esforço já antigo de retirar os moradores da área, que, segundo o jornal O Globo, teria um valor estimado em 10,6 bilhões de reais.
De acordo com os moradores, os policiais chegaram ao local por volta das 6h da manhã, com mais de 30 carros – incluindo três ônibus – e dezenas de homens da tropa de choque. Alertados sobre a operação um dia antes, os moradores fizeram uma vigília no acesso à comunidade desde 2h da manhã.
Situada em uma área de grande valor imobiliário e rodeada por diversos imóveis da Rede Globo, a comunidade do Horto sofre com ameaças de remoção desde a década de 50, quando o então Governador do Rio, Carlos Lacerda, pretendia construir um cemitério no local. O Horto está localizado próximo ao Jardim Botânico, e a comunidade se estabeleceu quando funcionários do parque precisaram de um lugar para viver e construíram moradias perto de seu local de trabalho.
A proposta de remoção dos residentes passa pela transferência dos terrenos do governo federal para o órgão que administra o Jardim Botânico, que, por sua vez, se encarregaria da remoção dos moradores. Até o impeachment de Dilma Rousseff, o governo federal tentou proteger o direito dos moradores do Horto de permanecerem em suas moradias, visando concretizar a regularização das casas quando os terrenos fossem transferidos para o parque.
Mas após o impeachment, o novo ministro do Meio Ambiente do governo Temer, José Sarney Filho, disse que deixaria a decisão sobre a reapropriação para o novo presidente do Instituto Jardim Botânico, Sérgio Besserman, indicado pelo próprio Sarney Filho.
— Quem pode opinar (sobre o Jardim Botânico) é quem mora aqui (no Rio). O Besserman é o novo presidente. A decisão dele é a minha decisão — disse o ministro.
Essa explicação é, no entanto, bastante cínica: Besserman é conhecido por defender a remoção de diversas famílias durante a administração do Prefeito Eduardo Paes. De fato, Besserman defendeu explicitamente que a remoção de favelas aumentaria o valor dos imóveis das redondezas.
— A lagoa Rodrigo de Freitas, cartão-postal da zona sul carioca, é um caso emblemático dos aspectos positivos que podem se seguir a uma remoção. Quando a favela foi retirada dali, em 1970, os imóveis da região, cujos valores vinham sendo depreciados, inverteram a curva e passaram a se valorizar — disse Besserman.
Deixar o poder em suas mãos resultaria certamente na expulsão dos residentes do Horto, efetivamente revertendo os esforços do governo Dilma de protegê-los.
Como era de se esperar, Besserman se dedicou a garantir uma ordem judicial para remover os moradores. Conforme reportagem do jornal O Globo em agosto, “com o cumprimento do acórdão, começarão a ser contados os prazos para a desocupação do terreno. Após o registro definitivo, são 60 dias para a reintegração de posse das mais de 200 casas com ações transitadas em julgado. Em paralelo, o Jardim Botânico terá 90 dias para ir à Justiça e retomar os imóveis sobre os quais não existem ações”. O prazo de 60 dias venceu em 25 de outubro.
Mais grave ainda, o maior proprietário de terrenos da região, que certamente seriam valorizados com a remoção, é o Grupo Globo. Besserman é um antigo colaborador do grupo, tendo participado como comentarista no canal GloboNews e tendo publicado textos no Jornal O Globo. Na pior das hipóteses, essa relação cria a impressão de um conflito de interesses – o economista é responsável por decidir sobre uma remoção de famílias que beneficiaria o Grupo Globo economicamente – e, portanto, os moradores do Horto acreditam que isso faz de Besserman um árbitro parcial na decisão de seus destinos (O The Intercept Brasil tentou contato com Besserman mas não obteve sucesso).
Os defensores da desapropriação dizem apoiá-la por motivos ambientais: para preservar a integridade da área do Jardim Botânico e para evitar que lixo e esgoto afetem a fauna silvestre local. Mais recentemente, os dirigentes do parque começaram a defender que o Horto tem sido tomado por gangues e surtos de violência, colocando em risco outros residentes locais notoriamente mais ricos. Além disso, insistem que nem todos os residentes da área são economicamente desfavorecidos; alguns, dizem, são ricos e têm bons contatos políticos, além de estarem usando essas influências para manter o direito às propriedades, às quais supostamente não teriam direito.
Uma rápida visita deixa claro que muitos dos moradores do Horto (talvez a grande maioria) são muito pobres. Conversas com as famílias revelam que muitos deles estão desempregados ou informalmente empregados, e não possuem meios para levarem suas famílias para outro lugar. Esses moradores insistem que cuidam de seu lixo e que programas muito mais objetivos do que a simples remoção das casas – como programas de conscientização e reciclagem – podem ser mais eficientes na proteção da área.
Os moradores do Horto ameaçados de remoção estão certos de que o meio ambiente está sendo usado como um pretexto para a desapropriação, não sendo seu verdadeiro motivo. Mencionam o alto valor imobiliário dos terrenos e acreditam que a real motivação por trás das remoções seja o valor comercial da área, embora seja difícil dizer como os terrenos seriam explorados, já que são protegidos por leis ambientais. Certo é que as autoridades responsáveis pela área não querem que essas famílias permaneçam ali.
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