Perdeu o fio da meada do que acontece no Brasil? Achava que o país teria menos corrupção com a queda da presidente Dilma Rousseff? Não entendeu por que a crise econômica continua mesmo após o PT ter sido varrido do governo? Então vamos lá. Respire fundo e venha comigo. Vamos recapitular:
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Derrotado na eleição presidencial de 2014, Aécio Neves (PSDB) não aceita o resultado e começa uma campanha – no Tribunal Superior Eleitoral, no Congresso, no Ministério Público e na mídia – para afastar Dilma, vencedora do pleito com 54.501.118 votos;
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Não há prova de que a presidente tenha cometido crime de responsabilidade, condição sine qua non para o impeachment. Tampouco há prova de que Dilma tenha se envolvido diretamente em um mísero episódio de corrupção. Aécio, contudo, constrói a narrativa do golpe: o governo Dilma é um fracasso, o PT é corrupto, portanto a presidente não tem condições de governar;
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A derrubada de Dilma interessa a muita gente. Empresários (à frente, a Fiesp – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), partidos de centro e de direita e grande parte da mídia (Organizações Globo, Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo etc.) não toleram a possibilidade de ver Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lidera todos os cenários das pesquisas de intenção de voto para 2018, ser eleito para um terceiro mandato e, quiçá, para um quarto, em 2022;
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Para muitos políticos, a queda de Dilma também é vista como uma forma de deter a Lava-Jato, megaoperação anticorrupção tocada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal sob a batuta do juiz federal Sérgio Moro. Com raríssimas exceções, todo o espectro político está contaminado pela corrupção. A Lava-Jato tem indícios e provas contra integrantes do PT, PMDB, PP, PSDB, DEM, PTB, PSB, PSDC, SD, entre outros partidos. “Tem de mudar o governo para estancar essa sangria”, diz Romero Jucá, cacique do PMDB, em conversa gravada pelo colega Sérgio Machado;
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Um dos que esperam ser salvos com a queda de Dilma é o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PDMB), acusado de receber dezenas de milhões de dólares em propinas pagas no exterior. Cunha adere ao movimento golpista;
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Vendo a chance de virar presidente, o vice-presidente Michel Temer se junta ao movimento golpista;
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A mídia faz uma campanha brutal contra o PT e, em especial, contra Lula e Dilma. O movimento é amplificado por grandes fatias do empresariado, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, por ministros do Tribunal de Contas da União, e pelos investigadores da Lava-Jato, que promovem uma onda de vazamentos seletivos para a imprensa. A Polícia Federal chega a grampear, sem autorização judicial, uma conversa entre Dilma e Lula. O juiz Moro recebe o grampo ilegal e, em vez de descartá-lo, vaza o áudio para a imprensa. Moro também torna públicas conversas telefônicas de Lula com seus advogados, que deveriam ser protegidas pela lei, e diálogos íntimos de familiares do ex-presidente que nada tinham a ver as investigações;
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O Supremo Tribunal Federal nada faz para conter o massacre de reputação promovido pelo MP e por Moro contra Dilma e Lula;
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Multidões saem às ruas contra Dilma, Lula e o PT. Ganham visibilidade os panelaços nas varandas de bairros de classe média e alta;
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A base política de Dilma derrete. A crise econômica se agrava. A oposição toca fogo no circo – Aécio e Eduardo Cunha à frente –, propondo pautas-bomba que amplificam a crise política e econômica;
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O impeachment avança sem que seja apontado um crime de responsabilidade contra Dilma. Por fim, na falta de coisa melhor, acusam-na de promover “pedaladas fiscais”, ou seja, manipular os números do orçamento.
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O impeachment passa na Câmara em um festival grotesco transmitido ao vivo. No microfone, deputados gritam “Eu digo SIMMMMMMMMMM” reverenciando a cidade natal, a família, Deus, torturadores e, sobretudo, o fim da corrupção. Alguns deles seriam presos logo depois ou denunciados por envolvimento por desvio de dinheiro público;
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O impeachment passa também no Senado. Vinte senadores a favor do afastamento da presidente (um quarto da Casa) estão citados na Lava-Jato ou são suspeitos de prática de caixa dois;
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Citado ele próprio na Lava-Jato por intermediar propina para o PMDB, Temer se torna presidente. Forma um ministério com outros sete mencionados em delações na Lava-Jato, entre eles, Romero Jucá, elevado à condição de ministro do Planejamento;
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Descoberto o grampo em que Jucá dizia “tem de mudar o governo para estancar essa sangria” [leia-se, parar a Lava-Jato], Temer o exonera. Mas logo depois o nomeia líder do governo no Congresso;
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Com Dilma fora do páreo e Lula, acuado, diminui drasticamente o ritmo de prisões e vazamentos na Lava-Jato;
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Aécio Neves tem forte presença no governo Temer e posa na mídia como moralizador. Raros são os que, na imprensa, cobram dele explicações pelo fato de ter sido citado em delação que aponta propina de 3% em uma das maiores obras de sua gestão no governo de Minas, a Cidade Administrativa (orçada em R$ 949 milhões, mas que consumiu R$ 1,26 bilhão);
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José Serra, outro prócer do PSDB que alimentou o movimento golpista, é alçado a ministro das Relações Exteriores. A imprensa divulga que Serra foi delatado na Lava-Jato; na eleição de 2010, ele teria recebido R$ 34,5 milhões, em valores corrigidos, no caixa dois. Parte do pagamento teria sido feita no exterior, segundo a denúncia. Rapidamente, a imprensa se esquece do caso. Serra continua ministro de Temer;
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Com o aval de Temer, o Congresso articula a anistia para políticos que receberam dinheiro no caixa dois para bancar campanhas eleitorais. A medida, que na prática legaliza propinas recebidas no passado, salvará muitos dos investigados na Lava-Jato;
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O Senado aprova uma nova rodada de repatriação de recursos mantidos ilegalmente no exterior. Mas dessa vez, diferentemente do que fora estabelecido no governo Dilma, libera a adesão de parentes de políticos – a medida é chamada de “emenda Cláudia Cruz”, referência à mulher de Eduardo Cunha que movimentava no exterior dinheiro sem declaração no Imposto de Renda e suspeito de ser fruto de propina;
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O ministro Geddel, oficial destacado do movimento golpista, tem um problema pessoal. Um apartamento que comprou na planta em Salvador está com o projeto comprometido pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O Iphan aceita que o prédio tenha apenas 13 andares dos 30 originalmente projetados a fim de não causar impacto nos bens tombados da vizinhança. Os apartamentos medem entre 259m² e 450 m² e custam entre R$ 2,6 milhões e R$ 4,5 milhões. Caso a medida não seja revertida, Geddel ficará sem seu apartamento, localizado nos andares mais elevados. Geddel então pressiona o ministro da Cultura, Marcelo Calero, a forçar o Iphan a reverter a decisão. Calero resiste;
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O presidente Michel Temer também pressiona Calero. Em audiência no Palácio do Planalto, Temer insta o ministro a tirar o caso do Iphan, passando-o para a alçada da Advocacia-Geral da União, onde Geddel conta com uma decisão favorável;
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Revelada a armação do presidente, Aécio corre em seu socorro: “na minha avaliação, do PSDB, nem de longe esse episódio atinge o sr. presidente Michel Temer”;
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O governo Temer tem apenas seis meses;
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Não se ouve o batido de uma frigideira sequer;
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Ninguém está nas ruas. MBL (Movimento Brasil Livre), Vem Pra Rua e outros grupos do gênero, que trabalharam fortemente para dar vida ao projeto golpista, agora só trabalham para eleger seus integrantes para cadeiras no Legislativo ou para o Executivo;
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A crise econômica continua;
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A corrupção continua;
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A impunidade está em permanente processo de construção;
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Como dizia Lampedusa, “algo deve mudar para que tudo continue como está”.
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